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Quarta-feira, 22/5/2013
Os EEUU e o golpe de 64
Humberto Pereira da Silva



No decênio mais recente, o cinema documental brasileiro está passando por momento prolífico. A cada ano, novas e instigantes produções revelam, principalmente, aspectos de nossa história cultural e política. Num rápido golpe dŽolhos nota-se um "boom" de documentários sobre movimentos como o Tropicalismo (Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, e Tropicália, de Marcelo Machado), tanto quanto de instantes da cena política (Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle, Marighella, de Isa Grinspum Ferraz, e Iara, de Flavio Frederico e Mariana Pamplona).

O foco sobre os anos 60, ou mesmo os 70, mereceria discussão pausada. Tanto mais porque com a repercussão de O Som ao Redor, de Kleber Mendonça, desponta a necessidade de se discutir o Brasil, o vazio cultural, as mudanças nas esferas sociais e o alheamento político dos anos recentes. Portanto, o sentido de investimento artístico e de comprometimento de uma obra de arte em confronto com o que se fez, e aconteceu, décadas atrás.

Nesse sentido, a extrema urgência de se ver e discutir O Dia Que Durou 21 anos, documentário dirigido por Flávio e Camilo Tavares. Pai e filho, Flávio, o pai, foi jornalista de destaque nos anos 60, no jornal A Ultima Hora. Militante de esquerda preso pela ditadura, Flávio tornou-se conhecido ao fazer parte do grupo trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick, que havia sido sequestrado pela guerrilha, em 1969.

Camilo foi criado no exílio, no México, e, sintomático, agora com pouco mais de quarenta anos, junto com o pai, realiza um filme com o objetivo explícito de mostrar o momento pré-golpe de 64, assim como a efetiva participação dos EEUU para garantir a investida militar e a adesão de seguimentos da sociedade civil. Para tanto, eles contaram com a abertura de arquivos da CIA, cujos relatórios não deixam dúvida de que, por meio da operação Brother Sam, os EEUU interviriam no Brasil caso a resistência levasse o país a uma guerra civil. É a partir desse material de arquivo que se evidencia como os EEUU intervieram no processo político brasileiro, tanto nos preparativos que antecederam ao golpe, quanto na garantia de sustentação do regime nos anos seguintes.

Desde a época do golpe, houve as mais diversas insinuações e acusações explícitas de participação americana. Nisso, claro, o contexto da Guerra Fria, a bipolarização entre capitalismo e comunismo, os jogos de propaganda ideológica de ambos os lados. O Dia..., então, confirma as suspeitas, tanto quanto cala aqueles que acusavam a participação americana de mistificação. Vale lembrar, contudo, que justamente com a abertura dos arquivos da CIA historiadores acadêmicos têm se debruçado sobre o tema (Carlos Fico, da UFRJ, escreveu em 2008 O grande irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo). O que O Dia... traz como novidade inequívoca para se chegar ao público externo às fronteiras da Universidade é o meio: o cinema documental.

O Dia..., de fato, acompanha de perto o livro de Carlos Fico, o qual, inclusive, participa do documentário com esclarecimentos sobre resultados de sua pesquisa nos arquivos da CIA. Mas a vantagem do filme é justamente a do cinema: pode chegar a espectadores que dificilmente se disporiam a passar pelas páginas de um livro acadêmico. Ou seja, não se pode perder de vista a força do cinema - para o bem e para o mal - destacada por teóricos como Theodor Adorno: servir-se com veículo de expressão na Indústria Cultural.

Para isso o filme conta com recursos que lhe são próprios. Em 77 minutos, O Dia... percorre os acontecimentos que prenunciam o golpe e as tensões pós-golpe que levam ao AI5, com os chamados "anos de chumbo". Como obra cinematográfica, O Dia... faz o que lhe cabe: exibir imagens, depoimentos e documentos por meio de uma narrativa que prende a atenção do espectador e evidencia o papel dos EEUU num momento capital de nossa história. O fluxo das imagens, ajustadas à banda sonora, persuade, toca a sensibilidade com propósito bem claro: exibir material com evidências que calam quem via os defensores da ingerência americana no golpe de 64 como propaladores de teorias conspiratórias.

Mas nunca é demais ressaltar que um filme, documental ou não, é uma obra de ficção; portanto, um artefato. Desde a Poética, de Aristóteles, uma das finalidades da arte é provocar a purificação, a catarse, enfim. Sendo assim, o espectador deve ser lembrado de que arte é mimese e não a própria realidade. O Dia... é um filme, montado (ou esculpido) de acordo com a visão de mundo de Flavio e de Camilo Tavares; impossível, pois, filtrar o parti pris ideológico colado em suas respectivas biografias. Eles respondem pela forma do filme; por conseguinte, todos os resíduos que pudessem comprometer suas intenções foram devidamente desbastados.

Com isso não se quer questionar as escolhas que fizeram - legítimas e bem sucedidas para o propósito de uma obra fílmica -, mas tão somente lembrar que arte não se confunde com ciência histórica. O Dia... é um filme a ser visto e, com ele, ser impulsionado a refletir sobre nossa condição, sobre o momento em que vivemos: nele um sopro de vento que busca um acerto de contas com o passado, e ao mesmo tempo aponta para as contradições do presente; um sopro que tem o cinema como veículo de expressão privilegiado.

O Dia Que Durou 21 anos se insere, assim, num conjunto de obras recentes que acentuam a necessidade de reflexão cultural, social e política. Os últimos anos têm sido invariavelmente caracterizados pelo excessivo individualismo, pela apatia e alienação política. A iniciativa de Flavio e Camilo Tavares deixa sinais de que há inquietações latentes, de que o cinema pode canalizar anseios, reativar debates e revelar facetas de um país com muito a ser desvelado.

Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 22/5/2013

 

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