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Quarta-feira, 3/7/2013
Um demente chamado J.G. Ballard
Luiz Rebinski Junior

Já foi provado cientificamente que conhecer um autor de ficção faz mal à saúde mental do leitor. Para quem procura apenas o que realmente importa na literatura - ou seja, os livros -, o bom mesmo é não saber uma linha sequer da biografia dos escritores que lê. O que, claro, é quase impossível em nossa época, em que sabemos mais dos escritores do que de seus livros.

Ler um livro no escuro talvez seja, hoje, o que de mais honesto o leitor pode fazer para um escritor, já que a avaliação prévia que fazemos de todo autor, nesse caso não existirá. Foi com esse espírito livre, esteado por minha ignorância a respeito de J.G. Ballard, que li Crash, um de seus livros mais célebres que, até então, para mim não existia. Ainda que realmente tenha convicção do que escrevi no primeiro parágrafo, paradoxalmente sou um leitor de entrevistas e biografias de escritores. Mas quando abri o romance de Ballard, por uma razão que desconheço, não li nem mesmo seu pequeno resumo biográfico na orelha de trás do volume. Talvez estivesse sob a influência da estranheza do romance e de seus protagonistas.

Narrado em primeira pessoa, não há nada em Crash que aproxime Ballard de algo como "um escritor amargurado tentando demonstrar que, apesar de seu fracasso profissional ou literário, ele, no fundo, é um gênio e toda a história que se empenhou para contar é apenas para reforçar a sua crença". O narrador Ballard de Crash fala em uma primeira pessoa desvinculada do ego, se é que me entendem. O cara tem um texto tão fino - o que não quer dizer rebuscado -, que os "eus" desaparecem em meio à sua prosa desconcertante e recheada de pensamentos, igualmente na medida, sobre a humanidade e seu plano fracassado. Tudo feito de forma que as reflexões passem longe de qualquer almanaque filosófico.

Ballard é um roteirista de cinema e TV que sofre um acidente de carro próximo ao aeroporto de Londres, matando um homem e deixando sua mulher gravemente ferida. Mas antes de o leitor ficar extasiado com a narração do acidente, nas primeiras linhas do livro já é possível sacar que aquela não se trata de uma história convencional: "Vaughan morreu ontem em seu último desastre de carro. Ao longo de nossa amizade, ele ensaiava sua morte em muitos desastres, mas esse foi seu único acidente de verdade. Conduzindo em rota de colisão com a limusine da atriz de cinema, seu carro saltou sobre o parapeito do elevado do aeroporto de Londres e mergulhou no teto de um ônibus cheio de passageiros de uma companhia aérea". Um ótimo prólogo para o que vem pela frente.

Ballard e Vaughan são dois doentes mentais que, aos poucos, criam uma confraria de lunáticos que sentem prazer em provocar e ver acidentes automobilísticos. Uma tara que excita os participantes dessa estranha turma, que ainda conta com uma mulher mutilada, um dublê de acidentes, além da própria esposa de Ballard e, para deixar a coisa ainda mais quente, a médica que perdeu o marido na colisão com Ballard. Realmente é um time de peso. Mas ninguém tira o posto de lunático premium de Vaughan, que, como o Brás Cubas de Machado, inicia o romance morto. Vaughan é uma espécie de Antonio Conselheiro das estradas e dos acidentes, que reúne em torno de suas obsessões alguns tarados tão loucos quanto ele. Ex-especialista em computadores, Vaughan percorre as rodovias da Inglaterra fotografando acidentes e casais transando. Leva em seu carro quase todo o seu acervo, que não é pequeno. Fotos de braços decepados, tórax esmagados e carne humana presa em ferragens de caminhões se misturam a imagens de sexo oral e bundas cabeludas flagradas por sua grande angular.

Todos os membros da confraria, de uma maneira ou de outra, foram vítimas do voyerismo de Vaughan, que exerce um perturbador fascínio em que se aproxima dele, apesar de ser um homem feio, cheio de cicatrizes pelo corpo. É aí que a coisa fica mais bizarra, pois os defeitos físicos, para esse povo, são parte do prazer, como se pudessem, de alguma forma, vivenciar sexualmente os acidentes que tanto veneram.

Minha leitura não é propriamente muito original, mas me satisfaz. É quase um ato-contínuo relacionar a tara dos malucões comandados por Vaughan com os tarados por tecnologia de hoje, essa gente com uma estranha obsessão por maçãs já mordidas que faz de tudo olhando para uma tela, até mesmo sexo - ou principalmente isso. Em 1973 os computadores ainda não estavam em alta, e talvez os carros fossem um símbolo forte de tecnologia da época, mas é só trocar o carro por computadores, telefones e internet, que Crash imediatamente passa a ser um romance dos anos 2000. Ballard, portanto, pode se sentar ao lado daqueles escritores conhecidos por vislumbrar o futuro com suas ficções, pelo menos no meu entendimento.

Ballard, o escritor, é daqueles autores que faz o leitor acreditar que todas aquelas palavras do livro são indispensáveis e insubstituíveis - o que certamente, no caso do livro que li, também deve ser creditado o trampo do tradutor. Não há linha ou parágrafo fora do lugar. O que certamente está indissociavelmente ligado às reflexões sobre a relação entre tecnologia e perversão sexual que o romance bizarramente discute. Some-se a essas habilidades, o fato de o mote do romance ser extremamente inventivo e exótico, como poucos hoje.

Os personagens também tomam suas pílulas, pois ninguém vive apenas de sexo e acidentes. E nessa hora Ballard, o escritor, aproveita para ir fundo na mente de suas crias. Mas as viagens de Crash não incluem alucinações que trazem à mente do indivíduo elefantes que voam ou coisas similares que o cinema sempre tentou retratar e nunca conseguiu. As drogas ajudam a capitalizar a sensibilidade dos personagens para que um decifre a mente do outro, num jogo de paranoia ferrado.

"Comecei a compreender os verdadeiros prazeres do desastre de carro depois do meu primeiro encontro com Vaughan. Sustentada num par de pernas tortas e cheias de cicatrizes, machucadas reiteradamente em uma ou outra colisão automobilística, a rude e perturbadora figura desse cientista truculento entrou na minha vida numa época em que suas obsessões eram sem dúvidas as de um louco", diz Ballard em um dos primeiros trechos do livro, sobre o fascínio exercido pelo guru das colisões.

Todos os atores desse roteiro de filme trash têm a convicção de que aquilo que cultuam simplesmente faz parte do mundo, ainda que tenham um mínimo de noção das convenções que os cercam. Assim como os noias do crack, os viciados em jogos e os pedófilos, os personagens de Ballard acreditam piamente que simplesmente existem e nada mais importa. Mas o que é mais impressionante, é que por um momento o leitor passa a acreditar que realmente aquele mundo é possível e até mesmo viável - e talvez o seja mesmo.

Ballard escreveu que ao ler Crash, seu analista disse que aquilo só poderia ter saído de uma mente doentia. O escritor encarou as palavras como um elogio. De minha parte, rezo todos os dias para encontrar livros como o desse demente.

Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 3/7/2013

 

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