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Terça-feira, 16/7/2013 Elke Coelho e a estética glacial-conceitual Jardel Dias Cavalcanti É dentro dessa política que foi inaugurada este mês a instigante exposição "Quando os objetos se tornam abismos", da artista plástica Elke Coelho. São dois andares da Casa de Cultura ocupados por uma grande variedade de objetos criados pela artista, reunidos a partir de uma proposta conceitual com forte teor introspectivo. A arte conceitual abriu um espaço, a partir dos anos 60 e 70, para que artistas pudessem criar obras de forma extremamente livre, a partir de uma infinidade de objetos apropriados do universo industrial ou natural, e no qual a ideia fosse mais importante que a fatura do próprio objeto. A (re)construção de significados a partir do encontro de objetos recortados e agrupados de forma inusitada advinha das experiências das vanguardas, principalmente dadaísta e surrealista, que tomaram, a partir da segunda metade do século XX, um caminho bastante profícuo em proposições artísticas. Artistas como Kosuth, Manzoni, Morris, Sol Lewitt, Buren, Cildo Meireles, Eva Hesse, Gober, dentre tantos outros, abriram espaço para experiências artísticas onde forma, ideologia, identidades, gêneros, política, subjetividades, história apareciam discutidas nesse entrecruzar de objetos redefinidos a partir do interesse particular de cada artista. No caso específico da artista Elke Coelho, essa tendência conceitual se dá pela apropriação de objetos industriais como cotonetes, giletes, vidros, alfinetes, palitos de fósforo, palitos de dente, algodão, caixas de acrílico, espuma, rolhas, pregos, canecas, esferas peroladas, etc, e pela apropriação de objetos naturais como plantas e frutas (cactos, flor sempre-viva e maçãs). Apesar da ideia de deserto não ser atraente, pois significa uma possibilidade de ausência de vida, de solidão, os cotonetes, em sua fatura algodoada, nos transmitem uma sensação de aconchego, de conforto dentro desse deserto. Embora o efeito imediato do branco na obra seja sensorial, vale atentar para o seu sentido simbólico. Segundo Kandinski, em seu livro Do espiritual na arte, "o branco, considerado muitas vezes como uma não-cor, é como o símbolo de um universo onde todas as cores, enquanto propriedades de substâncias materiais, se desvanecem. Este universo é de tal forma elevado, que dele não chega qualquer som. Apenas um grande silêncio se estende até ao infinito, como uma fria muralha, impenetrável e indestrutível. Na nossa alma, o branco atua como o silêncio absoluto. Interiormente, ressoa como ausência de som, que na música equivale ao silêncio, esse silêncio que apenas interrompe o desenvolvimento de uma frase, sem constituir remate definitivo. Este silêncio não está morto, antes transborda de possibilidades vivas. O branco soa como um silêncio que de súbito pudesse ser entendido. É um quase "nada" pleno de alegria juvenil, ou melhor, um nada anterior ao nascimento, a qualquer começo. Talvez a Terra, na sua época glacial, soasse assim, branca e fria." Este branco tem consequências simbólicas fortes em todas as obras de Elke Coelho. Outra obra em que é visível essa ideia de "fria muralha impenetrável" (ou que não se deixa penetrar), como o branco sugere, é "Coágulos", na qual uma grande quantidade de pequenas caixas de acrílico contendo bolinhas brancas são coladas sobre a parede branca, que funciona como uma duplicação da sua opacidade. O coágulo, que deveria ser vermelho, aqui é exposto numa brancura irremediável. No caso da obra "Proposta (situação outra)", duas maçãs aparecem lado a lado, uma delas com esferas peroladas e a outra totalmente espetada por alfinetes. A maçã, que deveria nos aproximar por sua cor vermelha (que segundo Kandinski evoca a força, a energia, a decisão, a alegria e o triunfo e, ao contrário do branco, soa como uma fanfarra em que predomina o som forte, obstinado e importuno do clarim), se torna, depois da inserção de um grande agrupamento de alfinetes espetados na fruta, semelhante ao cacto, esta planta simpática que, apesar de formosa, impede qualquer aproximação. A sensação que temos diante das duas maçãs é de que a primeira nos chama ao contato, já que as esferas peroladas a torna atraente, mas a segunda seria a resposta à aproximação: o seu impedimento espinhoso. Simbolicamente também sabemos que a maçã é o sedutor fruto do pecado ao qual não se resiste e pelo qual se pode perder o paraíso. Então, essa particularidade da forma com que a artista apresenta as duas frutas pode significar o tensionamento entre o desejo e sua impossibilidade (ou proibição) de realização. Essa indisposição entre materiais que se contrapõem também pode ser vista na obra "Casulo II", onde uma sucessão de giletes (lâminas de barbear), colocadas dentro de caixas como "telas", são acondicionadas junto a pequenos pedaços de algodão. À delicadeza do algodão, contrapõe-se o perigo do corte pela lâmina de aço. A artista opta por materiais delicados, singelos, mas cortantes e/ou perigosos. A sua organização metódica desses materiais denota uma paciência de monge zen budista, um autocontrole férreo, uma disposição minimalista pela repetição. A exposição é, aparentemente, à primeira vista, leve, serena, elaborada com cuidado e delicadeza, mas sob a menor aproximação começa-se a perceber o engano, através das armadilhas que vão se estabelecendo para o espectador a cada obra que se apresenta. Se se chegar muito perto, os pequenos objetos se tornam abismos. ![]() Na foto acima, a artista conversa com o público sobre seu processo de criação. Jardel Dias Cavalcanti |
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