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Quinta-feira, 18/7/2013
Um 'Réquiem' para a Memória
Felipe Leal

Uma das coisas que mais me fascinam é a memória. Creio, aliás, que ela é o nosso principal bem: guarda todo o nosso arsenal de vivências - vividas e inventadas. Sempre pensei que, perdendo a memória, o ser perderia sua identidade - coisa complicada de se pensar e definir hoje, para além de qualquer clichê pós-moderno. Sempre imaginei que um ser humano que não pudesse se lembrar de uma viagem, como mochileiro, que fez em certas férias de inverno e que marcou, dali pra frente, sua existência, fosse um pobre desgraçado, um ser digno de pena. E agora deparo com esta possibilidade - que sempre me foi terrível: de escrever e viver o seu ocaso, aquele momento em que a memória, junto com o resto de nosso corpo, começa a definhar: a velhice - que, por sinal, é a da minha avó.

No entanto, conviver com o esquecimento de minha avó - que guarda semelhanças com tantos outros esquecimentos dos quais já ouvi falar, mas que percebo não me terem feito ver, como o fez esse sentir na pele alguém tão próximo e íntimo ir perdendo de si para o tempo, o que por trás da memória pode haver: truque da existência:

É triste viver com alguém que não se lembra aonde foi parar o pote de manteiga que utilizara no último café - insisto em chamar margarina de manteiga; que não pode atinar por qual motivo encontra dinheiro no bolso das roupas guardadas há dias; que, no meio de um banho de fim de tarde, percebe que não tirou os sapatos antes de entrar no chuveiro.

É triste: um parêntese: uma das melhores sensações da minha infância era a do bolo de laranja que só a minha avó sabia fazer. A lembrança do seu sabor mesmo agora enche a minha boca d'água - outro artifício da memória. Mas é a mesma memória - não do passado, mas do presente - que quase me enche os olhos dīágua: ela já não sabe cozinhar e não é capaz de fazer o famoso bolo ou, quem sabe, aquela torta de limão que comíamos no Ano Novo - deixando à minha irmã, que me perdoe, a tarefa de comprar aquelas massas quase prontas e dar-nos um bolo bom, é verdade, mas muito distante da sensação das tardes ensolaradas de verão na cozinha da casa da minha avó.

Falemos da memória. Falemos da infância. Falemos da minha avó.

Acredito que todos nós sofremos de uma certa nostalgia da infância. Eu mesmo, às vezes, diante de um problema da existência cotidiana e adulta quero refugiar-me - romanticamente - nos tempos de criança: reviver um tempo de ouro, quase mítico, onde a vida parecia ser pura fruição: uma Era de Ouro - que não me cabe aqui desmanchar nem discutir, até porque iria contra a direção que quero dar à crônica. Mas a lembrança desse tempo, no seio da vida adulta, me parece ainda mais romântica e perfeita do que ele o tenha sido de fato - talvez um problema meu, nosso, nostálgicos humanos que somos - e é essa perfeição - na qual cremos - que nos permite projetar nosso ideal de mundo no passado remoto da infância e, por meio dele, esquecer a pobreza de experiência de nosso presente.

E o mais surpreendente disso tudo é que, embora minha avó se esqueça do que comeu no almoço horas atrás, ela pode se lembrar - e recontar a cada refeição em família - as histórias remotas de sua infância de há mais de 70 anos no interior de São Paulo. Já me acostumei a ouvir, por exemplo, o causo do defunto que, carregado em lençóis numa procissão fúnebre, cai morro abaixo, com sua filha correndo e gritando "abreca, meu pai!" - e um sorriso gostoso surge nos lábios de minha avó.

Eis a saída, o truque, da memória: no final de tudo, ela volta ao início, quando ainda tinha pouco que contar e guardar - e lá se esconde da triste experiência que é envelhecer.

É... nós vivemos imersos no mito.

Nota do Editor:
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado em Por Trás do Tempo.

Felipe Leal
São Paulo, 18/7/2013

 

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