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Segunda-feira, 5/8/2013
Meu Caro Amigo
Carina Destempero

Meu caro amigo, me perdoe a demora, mas só agora pude atender seu pedido de contar, do meu jeito, o que está acontecendo por aqui. A essa altura você já viu que tem muita gente comemorando a liberdade das redes sociais, gritando e se regozijando porque o gigante acordou, bradando que o Brasil mudou, que essa manifestação é totalmente nova e que agora tudo vai ser diferente. Ok, nada de novo nisso. O que posso lhe falar que você ainda não sabe é que concordo com muito pouco desse discurso. Não acho que as redes sociais sejam assim tão livres - e sei que nesse ponto você vai concordar comigo, isso já é assunto antigo pra gente. Sobre o maravilhoso gigante desperto, acho que ele está cambaleante, e a queda pode ser muito feia. Tirando alguns aspectos proporcionados pela tecnologia, não acho que essa manifestação seja tão diferente de outras antigas aqui no Brasil e no mundo inteiro. E quanto ao fato da mudança já ter ocorrido e que é inevitável que tudo seja diferente, bem, eu gostaria de acreditar nisso. Gostaria mesmo, inclusive em muitos momentos eu invejo quem pensa assim, quem tem toda essa certeza, esse desconhecimento puro que vem tão cheio de esperança. Eu não tenho isso. O que tenho são saberes e dúvidas.

Largo a caneta e imagino você abrindo essa carta e rindo. Que ideia a minha, escrever uma carta, com papel e caneta, colocar num envelope, e mandar pelo correio, em pleno 2013. Mas quando tudo está confuso acho que um retorno a tempos antigos ajuda. Penso que talvez por isso eu agora volta e meia me encontre em 1920, 1939, 1964, 1968 e até um pouco em 44 a.C. E percebo que é exatamente esse retorno ao passado que me impede de ver a novidade que outros veem no momento atual. Minha mania de explicação, meu desespero em querer saber se tornaram desespero por saber.

E, junto desses saberes e dessas dúvidas, vêm a frustração e até um pouco de raiva. A cada vez que vejo alguém compartilhando a foto de um cartaz que traz nada mais que um slogan publicitário achando que aquilo é uma revolução, fico frustrada. Quando compartilham um texto por causa do título, mas são incapazes de falar sobre quando perguntados - porque não o leram - fico com raiva. Você já deve ter visto algum dos nossos amigos em comum reclamando, dizendo que sou chata, que sou do contra e que só penso em velharia. Outro dia um conhecido postou uma daquelas lindas imagens da Presidente Vargas lotada com uma legenda que dizia algo tipo "não há mais esquerda nem direita, os partidos não nos representam, e agora que o povo viu isso está realmente unido." Aí comentei que crise representativa acontece desde o assassinato de Júlio César em 44 a.C., ato cometido em nome da República, mas que resultou na ascensão do primeiro imperador romano. Recomendei que assistissem "Z", filme de 1968 em que Costa-Gavras mostra o período da ditadura militar na Grécia, e no qual brados de "não há esquerda nem direita" eram claramente ouvidos. Mas quem vai escutar se todos estão ocupados gritando?

Um cansaço súbito me faz parar. Se digo que ninguém escuta, por que ele, a milhares de quilômetros de distância, vai me escutar? Por orte, ao terminar de pensar essa frase, eu me escuto. Uma criança mimada reclamando que o mundo não lhe dá o que é devido. Se tenho algo a dizer, se realmente quero ser escutada, e não estou sendo, o que eu posso fazer diferente?

Você vai escutar, era isso que eu pensava quando comecei a lhe escrever essa carta, a razão dela existir. O seu pedido de que eu lhe ontasse o que está acontecendo me parecia uma garantia de ser ouvida. Mas agora acho que você talvez também não me escute, e que ertamente não me escutaria se estivesse aqui agora, enquanto eu reclamo dos que apenas usam gritos de guerra sem pensar e, ao mesmo tempo, apelo em tom de lamúria que os outros pensem. Julgo os que não aceitam opiniões diferentes, mas será que eu as estou aceitando? Aí está algo que ainda não lhe disse sobre as manifestações, e que talvez seja sua característica mais importante: a pluralidade dos nvolvidos. Gente de esquerda, de direita, jovens, velhos, alguns que sabem tudo de política e história, outros que não fazem ideia de nada. Todos participando, cada um do seu jeito. Quem disse que isso não é válido? Aliás, essa seria uma ótima pauta para manifestações: que possamos aprender a estar juntos sendo diferentes. O difícil é que esse tipo de coisa não dá pra reivindicar ao outro, cada um terá que fazer sua parte. Mas acho que essa sim seria uma mudança real. Entender que um país não precisa que seu povo seja um, com um ideal, uma meta, um grito. Se há liberdade, é óbvio que existirão diferenças, mal-entendidos, desentendimentos e discordâncias. Para fazer um país diferente, talvez baste que nós consigamos aceitar e respeitar as nossas diferenças. Pode ser uma luta antiga, um discurso velho, mas não ligo. Sou conhecida por gostar de velharias.

Nota do Editor:
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado na antologia "Não é Só Por 20 Contos".

Carina Destempero
Rio de Janeiro, 5/8/2013

 

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