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Segunda-feira, 26/8/2013
A verdade somente a verdade?
Adriane Pasa

"Temos a arte para não morrer da verdade" disse o filósofo Friedrich Nietzsche. É, o mundo seria impossível sem a arte porque às vezes a vida é boring mesmo. Mas a realidade tem seu lado encantador e contém muita ficção. Sim. A vida é sempre cheia de tantos detalhes, emoções, dores, choques, viagens na maionese, devaneios e mentiras, e segundo os psicólogos, projeções. Quem disse que o que pensamos ou vemos não é pura ficção inventada por nós em algum momento? Sem contar que às vezes são tantas emoções que a gente parece estar mesmo dentro de um filme. Se observarmos o cotidiano com olhar atento e uma dose de romantismo, principalmente nas ruas onde estão os verdadeiros "filmes da vida real", veremos cenas interessantes todos os dias. E de graça.

A verdade é uma questão filosófica e a grande verdade mesmo é que ela não existe. Não adianta procurarmos e insistirmos nela porque como dizia Einstein, "tudo é relativo" (ô frase irritante). Para mim, a nuvem é um elefante e para o outro é um coelho. O que existe mesmo de palpável é o nosso cotidiano, a labuta de todo dia, as gargalhadas, o sofrimento da guerra ou da doença, as conversas sinceras, o abraço de um filho ou o beijo apaixonado. Existe a vida vivida. O resto é burocracia. A verdade é uma espécie de caleidoscópio, em que o que vemos é uma coisa, o que os outros veem é outra e o que vemos sobre o que os outros veem é outra ainda. A cada movimento, por mais sutil que seja, uma pedrinha colorida sempre muda de lugar no espelho.

Crescemos com a cultura da ficção e a consumimos como um doce. Mas há um gênero de filmes muito interessante e que cada vez mais ocupa espaço no cinema: o documentário. Tem como premissa a exploração da realidade, mas sendo uma representação subjetiva da mesma, cheio de recortes, nem sempre mostra a verdade como ela é. Há tantas mídias, formas e procedimentos que é complicado dizer que hoje o documentário se propõe somente a "contar a verdade". Mas ela está no seu DNA. Se pensarmos bem, o cinema nasceu com uma forma de documentário, com o filme dos irmãos Lumiére, considerado o primeiro da história, o famoso A Chegada do Trem na Estação (1895), no qual registrou-se o primeiro trem com câmera de cinema. Foi um fato verídico, não uma ficção.

No Brasil, as primeiras exibições de documentários aconteceram no final do século 19, com pequenas produções que mostravam paisagens regionais. Depois disso passaram-se cerca de vinte anos marcados por filmes etnográficos, a maioria realizados por antropólogos. Até que o documentário se abriu para outras possibilidades e formas.

Um cara que manda muito bem neste gênero no Brasil é Eduardo Coutinho. Realizou um dos principais filmes da história do documentário nacional: Cabra Marcado Para Morrer, sobre o assassinato do líder paraibano João Pedro Teixeira, ocorrido em 1962. Devido ao golpe militar, as filmagens foram interrompidas em 1964 e parte da equipe foi presa, retomando o trabalho somente 17 anos depois. Acho que a história desta filmagem daria um belo documentário. Coutinho também fez outros filmes bons como Santo Forte, Edifício Master, Jogo de Cena e Canções. Seus filmes são marcados por um estilo que busca a maior naturalidade possível de seus entrevistados. Mas em Jogo de Cena, no qual as personagens são atrizes - algumas famosas e outras não -, ele procurou romper fronteiras entre documentário e ficção. Há muitos outros cineastas que produziram e produzem ótimos documentários no Brasil. Como Marcelo Masagão, Jorge Furtado e Marcos Prado, por exemplo. Acredito que não existam mais regras ou barreiras para alguém que faz ficção produzir um documentário com qualidade e vice-versa. Tudo se mistura no cinema.

Pra quem gosta ou quer gostar deste gênero, recomendo acompanhar o Festival Internacional É Tudo Verdade, que existe há dezoito anos no Brasil e é um dos maiores festivais de documentários do mundo.

Uma das melhores coisas de assistir a um filme documentário é saber que se trata de algo que realmente aconteceu. É aquela sensação de "gente, mas como pode??". Mexe muito com as nossas dúvidas, crenças e até mesmo preconceitos sobre um tema. É o reality show do cinema, só que com licenças poéticas. Algumas histórias e seus personagens são tão inacreditáveis que nem parecem ter acontecido de verdade. Como em Estamira (2004), de Marcos Prado ou <>Searching for Sugar Man (ganhador do Oscar de 2012), dois de meus preferidos. Outras histórias são contadas de uma forma tão original, ousada e criativa, que surpreendem, mesmo não sendo tão relevantes. Documentos, fotos, depoimentos, paisagens, tudo pode ser usado para contar uma história. Em 2010 eu fiz um curso e acabei dirigindo um documentário amador, intitulado Bom dia, Boa Sorte. É um curta que fala sobre as ilusões criadas quando se vai à cartomantes e foi construído com depoimentos. Foi uma experiência e tanto, porque a gente descobre que tem um olhar limitado sobre um assunto antes de mergulhar fundo nele. A verdade é encantadora. Fora o prazer das surpresas que reservam as pessoas e situações.

Quem faz documentários sempre conta com o acaso, um dos ingredientes mais importantes do processo, na minha opinião, porque os olhos de um bom cineasta podem se aproveitar disso para revelar coisas que nem mesmo as pessoas envolvidas na história percebem, trazendo aspectos que podem tornar a história ainda mais interessante. É o olhar do outro sobre uma realidade.

Segue uma lista pequena (porque há vários outros bons) de documentários que valem o nosso tempo. É história que não acaba mais. No fim das contas, cada um vê a verdade que quer, dentro do seu próprio caleidoscópio.

(Muitos estão disponíveis em sua versão completa, no YouTube).

Cabra Marcado para Morrer (1985), de Eduardo Coutinho.

Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado.

Arquitetura da Destruição (1989), de Peter Cohen.

Nós que aqui estamos por vós esperamos (1999), de Marcelo Masagão.

Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho.

Tiros em Columbine (2002), de Michael Moore.

Motoboys Vida Loca (2002), de Caíto Ortiz.

The Corporation (2003), de Mark Achbar e Jennifer Abbott.

Estamira (2004), de Marcos Prado.

O Cárcere e a Rua (2004), de Liliana Sulzbach.

A Marcha dos Pinguins (2004), de Luc Jacquet.

Super Size Me (2004), de Morgan Spurlock.

Entreatos (2004), de João Moreira Salles.

Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei (2007), de Cláudio Manoel.

SiCKO (2007), de Michael Moore.

Man on Wire (O Equilibrista, 2008), de James Marsh.

Food, Inc. (2008), de Robert Kenner.

Recife Frio (falso documentário, 2009), de Kleber Mendonça Filho.

Gretchen Filme Estrada (2010), de Eliane Brum e Paschoal Samora.

Iván - De Volta para o Passado (2011), de Guto Pasko.

Janela da Alma (2011), de João Jardim e Walter Carvalho.

Quebrando o Tabu (2011) , de Fernando Grostein Andrade.

Searching for Sugar Man (2012), de Malik Bendjelloul.

Raul -O Início, o Fim e o Meio (2012), de Walter Carvalho.

Elena(2012), de Petra Costa.

Pátio (2013), de Aly Muritiba.

Termino aqui com o depoimento sincero de Alessandra, de Edifício Master, do mestre Eduardo Coutinho.



Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado em Cinema sem Blá Blá Blá.

Adriane Pasa
São Paulo, 26/8/2013

 

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