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Quinta-feira, 19/9/2013
Getúlio Vargas e sua nova biografia
Eugenia Zerbini

Véspera de 24 de agosto. Começo a redigir esta coluna. No Brasil, há um fabulário de superstições políticas em torno da data, dia em que, em 1961, Jânio Quadros renunciou, e, em 1954, Getúlio Vargas(1882-1954) suicidou-se. Hoje, 23 de agosto de 2013, com a Lua minguante em Áries, e Mercúrio por sua vez ingressando em Virgem, faço meu começo. Getúlio Dornelles Vargas era ariano do dia 19 de abril. Signo em que a Lua míngua. Tudo conspira para que meu espaço seja dedicado a Vargas e ao recém-publicado segundo volume de sua nova biografia assinada por Lira Neto.

Lira Neto, o bem sucedido autor das biografias sobre José de Alencar (O inimigo do rei, prêmio Jabuti em 2007), Maysa (base para mini-série para televisão) e Padre Cícero, decidiu debruçar-se sobre a vida de Getúlio Vargas. A ausência de uma biografia jornalística exaustiva e concebida em termos atuais desse político brasileiro - controverso e contraditório - era reconhecida pelos cultores do gênero biográfico. Fernando Morais, anos atrás, no 1º Festival Literário da Mantiqueira (2008), confessou sua vontade de escrever sobre Getúlio, afirmando que não havia até então obra que retratasse essa polêmica figura, a quem se ama ou se odeia, de corpo inteiro. Pena não ter seguido seu desejo. Lira Neto tomou para si a tarefa.

Segundo este último, a proposta era analisar de modo amplo e preciso a vida daquele chamado por seus admiradores como "Dr. Getúlio". Claro que sobre Vargas existem biografias e estudos anteriores; porém, alguns deles escritos em tom hagiográfico, outros até publicados com o biografado ainda vivo. Há ainda aquelas obras adstritas a certos períodos ou pontos particulares, por exemplo, centrados em sua vida pública. Como admite o autor ao final do primeiro volume, "já foram utilizadas toneladas de papel e tinta para se tentar decifrar Getúlio". A esfinge do Catete (então sede do governo, quando o Rio de Janeiro era a capital da República), na mesma linha de Kissinger, que, em Diplomacia, trata Napoleão III como a esfinge das Tulherias. Afinal, ambos foram responsáveis pelo desenvolvimento industrial, econômico e financeiro de seus respectivos países. Tirando isso, e a queda por belas mulheres, nada em comum.

Além dessa abordagem ampliada, o que daria tom à nova biografia de Lira Neto, segundo o autor, seria a importância conferida à pesquisa em fontes primárias, pelo Brasil e fora dele. Com isso, seriam postas por terra inverdades tidas como verdadeiras, como o caso dos homicídios atribuídos a Getúlio Vargas por seu arqui-inimigo Carlos Lacerda, em 1954. Em um deles, supostamente cometido em Ouro Preto, Getúlio Vargas era um adolescente de 15 anos. Nesse caso, como na morte de um índio, as acusações provaram-se sem fundamento frente aos autos dos processos, consultados por Lira Neto. Getúlio pode ter sido um ditador cruel e severo, mas, não, culpado de homicídio. Muito menos adolescente sem coração.

O autor esclarece que o problema maior do primeiro volume foi a falta de dados sobre os anos iniciais de Getúlio Vargas. Como teriam sido as décadas de formação do filho de Cândida Dornelles - a dona Candoca - e do general Manoel Vargas? Este, estancieiro dos pampas, cevado no caldo indigesto do caudilhismo, levado à patente nas lutas da Guerra do Paraguai. O autor dá conta do recado. Como biógrafo de talento, começa sua narrativa com o biografado vitorioso na cabeça da revolução de 3 de outubro de 1930, já instalado no Rio de Janeiro, na presidência do Brasil. Em prólogo magistral, intitulado "Onze aviões sobrevoam o Rio de Janeiro. Na fuselagem, ostentam o emblema fascista (1931)", Lira Neto começa seu livro, despertando a curiosidade do leitor:

"Na tarde daquele 15 de janeiro de 1931, uma quinta-feira escaldante de verão carioca, as 10 mil pessoas aglomeradas ao longo da amurada da praia do Flamengo voltavam os olhos para o horizonte. Os relógios marcavam quatro e meia em ponto quando onze gigantescos hidroaviões Savoia Marchetti S-55 A, de fabricação italiana, surgiram em vôo baixo, por detrás do Pão de Açúcar
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Não se tratava de um ataque militar. Era uma manobra festiva".

Aos vivas dados ao Brasil, a Vargas e a Mussolini, o povo saudava os pilotos italianos que cruzaram o Atlântico, em visita oficial ao país, sob o comando de Italo Balbo, ministro da Aeronáutica de Mussolini. Depois do impacto do prólogo escrito con spirito e brio, o autor dá marcha ré e encara o início da vida do biografado: infância em São Borja, estudos em Ouro Preto, Escola Militar e Faculdade de Direito no Rio Grande do Sul; estreia na carreira política como deputado estadual, em 1910; na sequência, deputado federal, presidente do estado (título que se dava até 1930 aos governadores) e presidente do país, depois do movimento de 1930, que põe fim à República Velha.

O segundo volume da biografia retrata Vargas no período de 1930 a 1945, do governo provisório à ditadura do Estado Novo. Anos turbulentos tanto na história do Brasil como na do mundo. Aí encontramos Vargas como chefe do Governo Provisório (1930 a 1934), presidente constitucional (1934-1937) e como ditador (até 1945). Lira Neto esclarece que, tendo em vista a disponibilidade de estudos históricos de qualidade sobre cada um desses períodos, em muitos momentos nada mais fez do que resumir e alinhar muitas dessas interpretações. Mas, não deixa de lado a vida pessoal da esfinge do Catete, discorrendo sobre sua privacidade, como é o caso do affair mantido por mais de ano com a fabulosa Aimée de Heeren (nascida Sotto Maior Sá), certamente a "Bem-Amada" citada em seus diários.

O projeto de elaboração dessa mais recente biografia de Getúlio Vargas iniciou em 2010, após reunião do autor, seu editor, Luis Schwartz, e Rodrigo Teixeira (sim, o mesmo do polêmico projeto Amores Expressos). Este último, que adquirira os direitos de filmar a biografia de Padre Cícero, decidiu bancar o autor na nova empreitada. Tendo em vista a abrangência da obra que dela resultaria, planejou-se a divisão em três volumes. O primeiro foi lançado no ano passado, com as 150 páginas do segundo volume já escritas. Com alguma semelhança do que ocorrera com Amores Expressos, houve o lançamento de uma página na Internet dando notícias sobre o andamento dos trabalhos. Foi inserida uma chamada pública para participações, por meio do envio de qualquer material relacionado ao biografado. De fotografias a anedotas. Apesar da iniciativa, para a maioria entendida como uma manobra de marketing, o resultado foi considerado duvidoso, por alguns: "Não traz nenhuma novidade", teria afirmado Boris Fausto, antigo professor de História da Universidade de São Paulo e historiador de renome, autor, inclusive, de obra sobre o biografado (Getúlio Vargas, o poder e o sorriso, Cia das Letras, 2006), ao concluir a leitura do primeiro volume.

O ineditismo da documentação trazida à luz por Lira Neto foi contestado. Do discurso de formatura na Faculdade de Direito de Porto Alegre, em 1907, aos achados na consulta dos processos em Minas e no Rio Grande do Sul. José Loureiro em O anjo da fidelidade, a história de Gregório Fortunato; Lutero Vargas (filho de Getúlio), em Getúlio Vargas, a revolução inacabada; e Fernando Jorge, em sua biografia de dois volumes sobre Vargas (todas obras esgotadas), já teriam tornado públicas tanto aquele documento como o teor dos processos. Todavia, para o público esse parece não ser o grande "x" da questão. A quarta capa do segundo volume traz elogios de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva.

O importante é que Lira Neto conferiu formato novo a uma história, quem sabe já contada, mas cujos capítulos estavam dispersos aqui e acolá. Nesse remix deu organicidade ao relato, confirmou todas as fontes e colocou tudo em um discurso com sabor, charme e atualidade. Não seria isso que Laurentino Gomes faz em sua trilogia 1808, 1822, 1889 de estrondoso sucesso? E, em matéria de biografia, sempre me pergunto: quantas biografias existem sobre Napoleão, quantas sobre Maria Antonieta? E elas continuam a ser escritas, publicadas e traduzidas porque cada época volta seu olhar, datado, para o passado, que nessa reinterpretação se reorganiza. Não se trata de alterar os fatos acontecidos, mas abordar o que aconteceu sobre outro ângulo.

Com Getúlio Vargas, o pai dos pobres (e a mãe dos ricos) não é diferente: biografias e um recente romance biográfico, de autoria de Juremir Machado da Silva, foram publicados, todos apresentando a esfinge sob um certo prisma. Desde o tempo de Édipo sabe-se que ela devora os que não a decifram. Aguarda-se o terceiro e último volume da trilogia para o próximo ano.

Concluo minha coluna no último dia do mês de agosto, mês do desgosto, segundo uma rima antiga. Com a Lua minguando em Câncer. A Lua, relacionada ao materno, exalta-se quando no signo de Câncer, por ela regido. Minha mãe, getulista exaltada, parou de me amamentar quando ouviu no rádio a notícia do suicídio de Getúlio. Como diriam as comadres de outrora, seu leite secou. Por outro lado, tenho uma fotografia em que meu pai, muito jovem, está fardado ao lado de Washington Luiz, este de cartola, em sua partida rumo ao exílio, vencido pela revolução de Getúlio. Primeiro gesto paterno contra Vargas. Papai combateu em favor de São Paulo, em 1932, nas trincheiras de Cunha, no Vale do Paraíba. Ele e seus dois irmãos médicos. O mais velho teve sua primeira "crise de nervos" (como sempre escutei em família) quando, em Paraty, uma granada inimiga matou o motorista do jipe em que se encontrava, deixando sua efígie impressa em pólvora em um muro próximo. Na sequência, contraiu encefalite e faleceu em meados dos anos 1940. Meu pai, em outubro de 1932, foi preso, passou uma temporada no navio Pedro I, outra no presídio de Ilha Grande e quase foi exilado para Portugal, não fosse a anistia de 1934. Tem razão o historiador Eric Hobsbawn, ao afirmar, no início de seu A era dos extremos, que de repente nos damos conta que a memória virou História. No nosso caso, biografia.

Eugenia Zerbini
São Paulo, 19/9/2013

 

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