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Quinta-feira, 10/10/2013
Terra, chão de primavera
Elisa Andrade Buzzo


ilustra: Renato Lima

As noites têm caído com o silêncio das preces diárias. Mais um dia e outro dia, a sucessão do tempo se fazendo vertiginosa, mais um dia e outro dia, e não estivemos atentos ao movimento da natureza, nem aparecemos na sacada para sentir suficientemente a garoa. Das noites ela tem caído com uma gelidez de pedra e, assustados com isto que é apenas bálsamo enviado sobre nós, fechamos as janelas, corremos para debaixo dos toldos e marquises, que, estas sim, recebem sem apreensão tal prenúncio primaveril.

Aqui a primavera vem cercada por incertezas e dureza. A cada estação há mais plantas nos vestidos e nas saias que desfilam nas ruas do que propriamente nelas, e os shoppings ostentam uma profusão de arranjos florais. Numa dessas noites de transição do suceder do tempo, acordamos assustados com estrondos e transtornos. Acaso são anjos entoando flores e trombones no azul da madrugada, para anunciar a chegada das cores da primavera? De certa forma, sim, pois são operários da prefeitura que vieram descartar o chão alquebrado.

Este pedaço da rua também foi contemplado, e agora ganha uma nova e fumegante camada de asfalto. Deitados na cama sabemos que as máquinas são baixas e fortes, como homens troncudos, e fazem o serviço sem piedade. Tratava-se da máquina responsável por raspar o asfalto antigo, deixando a rua com um aspecto de piso listrado, truculento, e no dia seguinte, quando atravessávamos a rua podíamos sentir as ondulações pela sola do sapato.

Noutra parte, nas estações de metrô da cidade, operários também cuidam da saúde de nosso chão. O piso de plástico de bolinhas pretas é paulatinamente trocado por outro, frio e cinza, conhecido por sua dureza em aguentar milhões de pisadas. Os operários vão criando pequenos cercos em que, aí sim, a base é arrancada, e em chão com areia e cimentado é assentada a nova casca. Sua manutenção e limpeza parece mais fácil do que varrer a terra as sementes e a poeira e qualquer outro tipo de frágil e insistente vida que se aloja entre as bolinhas.

Desses pavimentos renovados brotarão flores novas, mata virgem, alguma estirpe árida de renovação? É como se pudéssemos ver o momento em que a semente pousou no chão, em que a muda foi enfim plantada na pequena cova furada na terra; mesmo que semente suja, mesmo que muda débil e imunda de cidade. E destas novas bases que se erguem em ritmo de reforma da cidade e da vida, o que teremos como continuidade, como puridade de verde e linho? Por enquanto, a gelidez das escadas de concreto sendo lixadas, uma limpeza talvez desenfreada e o sentimento de que a cada estação as amoras se espatifam no chão sem testemunhas.

Pois que estes chãos foram postos de forma a impossibilitar a poesia escorregadia. Como diria o ditado: aqui em se plantando não dá. Temos asfalto novo, temos concreto novo, temos piso novo, chuva em abundância. Estamos esperando algo muito bonito, muito belo acontecer; sem a fofura da terra, como pode ser? Agora, é terrar o chão velho que se foi para então plantar, para a primavera que se seguirá a esta e outras.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 10/10/2013

 

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