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Quinta-feira, 17/10/2013
Só uma descrição
Eugenia Zerbini

E a professora pediu que cada um escolhesse um trecho de descrição. Isso mesmo, de uma simples descrição. Em seguida, a pista: que procurássemos Isaac Babel (1894-19410), escritor judeu nascido na Ucrânia, combatente na campanha russo-polonesa, o que não lhe serviu de defesa na perseguição que lhe foi impingida posteriormente pelo regime de Stálin. Tratava-se, dizia ela, de O exército de cavalaria. Tempos atrás, tomei emprestada a tradução competente da obra publicada pela Cosac Naif, direto do russo, que me deixou encantada. Há um conto, curto, todo ele descritivo, "O cemitério de Kozin":

"O cemitério de uma pequena cidade judia. Assíria e toda a misteriosa estagnação do Oriente, sobre essas planícies da Volínia, cobertas de ervas daninhas.
Pedras tumulares cinzentas, esculpidas, com inscrições de trezentos anos. Altos relevos talhados no granito: cordeiros e peixes pintados sobre um crânio e rabinos de gorro de peliça, rabinos com magros rins cingidos por cintos de couro. Abaixo das faces sem olhos, a linha ondulada das barbas encaracoladas esculpidas em pedra. A um lado, sob um carvalho atingido pelo raio, fica a cripta onde jaz o Rabino Azrael, morto pelos cossacos de Bogdan Khmelnitsky. Quatro gerações jazem enterradas nessa cripta, de abóboda tão baixa quanto a morada de um carregador de água; a pedra tumular onde cresce a hera fala deles com eloquência de uma prece de beduíno.
' Azrael, filho de Ananias, porta-voz de Jeová.
'Elias, filho de Azrael, o cérebro que lutou sozinho contra o olvido.
' Wolf, filho de Elias, príncipe arrebatado à Tora, em sua décima primavera.
' Judá, filho de Wolff, rabino de Cracóvia e Praga.
' Oh! Morte, oh cobiçosa, oh, ladra ambiciosa por que não nos poupaste, ao menos uma vez?"

Um conto perfeito, diluindo todo o receituário que existe sobre o gênero: a sedução rápida, o ritmo célere e o final surpreendente. O tal do nocaute do leitor. Nesse sentido, um grande "Viva!" para Linda Davis e seu Tipos de Perturbação, que arrasa os cânones ditos consagrados, já bem sacudidos antes, por exemplo, por Roberto Bolaño, em Putas Assassinas.

Para ir além do exigido (imagino que irei morrer acompanhada por esse dever de exceder, de ir além do que é pedido, que nada mais é do que o desejo de agradar) dei início à caçada de outras boas descrições, tarefa na aparência fácil, mas que se revelou difícil no concreto.

Colocando entre parênteses por um instante o que hoje se ensina (que o escritor não deve descrever nada, mas, sim, mostrar ao leitor), a descrição é o imóvel, o objetivo, a fotografia.Não existe fotografia sem fotógrafo e, como é reconhecido, não há olhar ingênuo nem descompromissado.

No meio das boas descrições, aparecem ruídos quer do narrador (ou de outro personagem), quer do autor, quando não reflexões e digressões. Rápida, imaginei o atalho certo: Flaubert (1821-1880), uma vez que, segundo James Wood (Como funciona a ficção), tudo começou com ele: há um antes Flaubert e um depois dele. O foco ficou concentrado em seus três únicos contos, nos quais Gustave Flaubert trabalhou, de 1875 a 1877: "Um coração simples","A lenda de São Julião Hospitaleiro" e "Herodíade". Deste último, extraí a descrição a seguir:

"Todos aqueles montes em redor, como andares de grandes ondas petrificadas, os precipícios negros nos flancos das falésias, a imensidade do céu azul, o brilho violento do dia, a profundeza dos abismos, perturbavam-no; e invadia-o uma desolação perante o espetáculo do deserto, que figurava, na confusão daqueles terrenos, anfiteatros e palácios desmoronados. O vento quente trazia, com o cheiro de enxofre, como que a emanação das cidades malditas sepultadas abaixo da margem sob as águas espessas. Estes indícios de uma ira imortal aterravam o seu pensamento; e ficava com os cotovelos apoiados na balaustrada, os olhos fitos e a fronte entre as mãos".

Essa é a cena em que Herodes contempla o deserto, escutando ao longe as profecias de seu prisioneiro São João Batista, vaticinadas em uma língua que o Tetrarca não entende. A objetividade fica comprometida, acredito eu, pelo eco que existe entre a subjetividade do personagem e a natureza que o circunda.

E quanto aos contemporâneos, será que as grandes descrições ainda se fazem presentes? Sim, respondo de pronto, recordando-me de um livro recente, cuja leitura calou-me fundo: Nocilla Dreams, de Agústin Fernández Mallo. Desejei, inclusive, escrever uma coluna sobre ele. Porém, depois de ler o que já havia sido escrito, desanimei. Não conseguiria acrescentar nada de novo.

No fragmentado Nocilla Dreams, em que, como em um caleidoscópio, os textos, tanto do autor, como atribuídos a terceiros, ajustam-se, sobrepõe-se, afastam-se e reagrupam-se, formando novas figuras, há também descrições de desertos:

"57
Os desertos, como os doentes, são objetos, embora vivos, à beira de tudo, em processo de consumação e, fundamentalmente delgados. A pele de ambos é branco-amarelada, e eles subsistem extenuados, embora sempre encontrem um oásis genético que os salva no final. A escassez de recursos leva-os a fantasiar situações de autêntica abundância e prazer, mesmo nos momentos mais duros alcançam cotas de delírio quase lisérgico e acolhem todo tipo de criaturas estranhas em seus domínios, só para sentir que alguém os ama e se preocupa com eles.
....................................................................................................."

As partes integrantes da obra, curtas e numeradas, suscitaram paralelos entre Nocilla Dreams e Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortazar. Será por que a ordem dos fatores (ou seja, a sequência adotada nos capítulos numerados) não interfere no produto? O livro de Fernández Mallo é nervoso em seu recado, que se aprofunda a cada releitura. Bizarro, com elegância; uma brincadeira, só na aparência, uma vez que carregado de propriedade.

Se, em O jogo da amarelinha, o que costura as idas e vindas do narrador em torno de sua paixão, Marga, é a Paris dos anos 1960, onde se escuta jazz e se flana pelo Quartier Latin, em Nocilla Dreams um universo gravita em torno de uma certa árvore, assim descrita:

"No momento em que sopra o vento do sul, aquele que chega do Arizona e percorre os diferentes desertos semi-habitados e a dúzia e meia de povoados que com os anos se viram sujeitos a um êxodo incontrolável até se rebaixarem a pouco mais do que aldeias-esqueleto, nesse momento, justo nesse momento, as centenas de pares de sapatos que pendem do álamo se submetem a um movimento pendular,mas nem todos com a mesma freqüência, já que os cadarços pelos quais estão presos aos ramos são de cumprimentos muito diferentes. Na verdade, visto a certa distância é um baile caótico no qual, apesar de tudo, se intuem certas regras. Dão-se fortes golpes uns contra os outros, e de súbito mudam de velocidade ou trajetória para finalmente retornar aos pontos atratores, ao equilíbrio. O mais parecido com um maremoto de sapatos. Esse álamo americano que encontrou água fica a uns duzentos quilômetros de Carson City e a 218 de Ely; vale a pena chegar até ele só para vê-los parados e à espera do movimento".

É uma descrição objetiva, com uma dinâmica interna que dança sob os olhos do público, como o bailado dos móbiles de A.Calder(1898-1976), representado nos sapatos amarrados nos galhos do velho álamo. Não mais uma projeção do interior do personagem (ou do narrador ou do autor) sobre a natureza que o circunda, porém do próprio leitor sobre o descrito.


Eugenia Zerbini
São Paulo, 17/10/2013

 

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