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Sexta-feira, 18/10/2013
A bibliotecária de plantão
Ana Elisa Ribeiro

Era assim: eu planejava tudo, pensava em um jeito de os meninos curtirem livros e histórias, tirava-os de dentro daquela sala insossa, levava-os, em fila, para a biblioteca escolar e a moça nos atendia com cara de medrosa. Lá, eu dizia pra a gurizada explorar, escolher e capturar. Depois disso, que era tipo uma festa, eu pedia que eles lessem e curtissem. Simples assim: pegue, leve, abra, leia. Goste ou não. Do it yourself, que era meu lema para a leitura, a experiência da leitura. Tá. Mas aí eu fazia isso sob o olhar opressor daquela moça.

Eu não sei o nome dela. Não guardei ou não perguntei. Mas ela certamente tinha um. Eu não sabia que ela ficaria tão chateada por ver "sua" biblioteca tão remexida. Mas eu, que curtia livros - e não apenas guardá-los -, ficava meio sem graça com o incômodo da bibliotecária. Eu não sei se ela tinha formação para administrar aquele espaço, eu não sei quem era ela. E até queria saber. Mas eu sabia era que a considerava desajustada às funções daquele lugar.

Certa vez, ao levar a moçadinha pra lá e pedir que eles, de novo, explorassem, escolhessem e lessem, ela fez um bico de quem estava mais brava do que o normal. Eu continuei sorrindo de canto de boca pra ela. Mas eu sabia que vinha chumbo. Mais tarde, a diretora e dona da escola veio me chamar. "Olha, a Fulana disse que você leva os meninos para a biblioteca e eles tiram os livros do lugar". Se eu fosse aquela diretora, eu não ia ligar a mínima para aquela reclamação descabida. Mas, em todo caso, se fosse só uma questão de pegar livro e por de volta na estante, no lugarzinho e do jeitinho que estava, tudo bem. Vamos nos esforçar. E foi o que fizemos.

Mas a moça continuava triste com as nossas visitas. Continuava querendo me matar. Continuava amaldiçoando cada criança que explorava, escolhia e pegava um livro na estante. Estante, prateleira, organização, catalogação. Meu Deus, quanto caminho para se obter um livro! Quanto protocolo. Mas eu insisti. Eu enchi a paciência daquela moça por um tempão. E acho que ela não aprendeu nada com isso.

Mas ela me lembrava uma outra moça: a bibliotecária da escola onde eu estudei, por anos a fio. Na falta de uma professora ou de um professor gente boa para me levar até lá com meus colegas, eu mesma ia, mais ou menos sorrateira, na hora do recreio. A turma fazia planos para o vôlei ou para o lanche, mas eu dizia que ia ali e já voltava. Na verdade, eu passava pelo corredor de baixo, virava à direita, descia a escadinha lateral da cantina e entrava na portinha da biblioteca, no subsolo. Sim, não era uma bela biblioteca, como a da escola em que leciono hoje. Era uma espécie de porão, escuro, inclusive, onde livros velhos e livros de vestibular estava dispostos em prateleiras. A bibliotecária era uma moça de nariz adunco, pequena e simpática, que achava sempre curiosa a minha chegada. Ela dizia: "Por que você não vai pro recreio?", mas eu não sentia nenhum tom malicioso na pergunta dela. Era curiosidade mesmo. Era atípico uma adolescente preferir aquele beco às delícias do recreio, lá em cima. Eu, pra começar, não gostava de barulho e gritaria. Lembro-me dessa sensação desde a pré-escola. Mas a moça não queria me expulsar ou dizer pra eu não mexer nas prateleiras tão organizadinhas. Ela só queria saber de onde vinha aquele meu gosto pelo improvável.

De vez em quando, a moça pequena me ajudava. Eu ia pescando os livros pela fila que eles faziam uns com os outros. Não havia indicação prévia. Eu simplesmente explorava aquelas prateleiras pra ver se elas me diziam alguma coisa. E elas sempre diziam. E um livro puxava o outro, como numa teresa de fugir da prisão. E eu fazia isso quase todos os dias. Só de vez em quando, enquanto ainda estava lendo algum livro, eu não aparecia lá. Nesses dias, eu curtia a roda de violão do canto do pátio, perto do vestiário.

Eu achava os bibliotecários uns seres meio mágicos. Eu pensava: que trabalho paradisíaco será esse? Como essa pessoa conseguiu ter a função de tomar conta de uma biblioteca inteirinha? Que coisa linda, gente. Mas eu não tinha ideia de como chegar lá, a não ser comprando meus próprios livros, meu acervo. Ah, que palavra linda: acervo. Ainda teria o meu. E ele começou a ser formado naqueles anos, enquanto eu descobria e aproveitava o acervo público.

Imagine-se uma pessoa que gostasse de livros e pudesse ter, ao seu alcance, todos os dias, uma casa inteira cheia deles. A bibliotecária era invejável. Mas eu não queria livros apenas para guardar, organinzar, catalogar. Eu queria livros para ler. Então não podia ser justo encontrar obstáculos à minha chegada ou à dos meus aluninhos.

Um dia, me disseram, que muitas bibliotecárias de escola não estavam onde queriam estar. Isso me deixou pesarosa por um tempo. Como pode? Contaram-me umas histórias terríveis de pessoas que ficaram doentes ou de pessoas que queriam sair da sala de aula. Essas pessoas chateadas eram "mandadas" ou "desviadas" para algumas bibliotecas, onde podiam se isolar. Que tristeza não estar onde se quer estar! E aí eu entendia o ar de castigo que uma das bibliotecárias tinha. Que sentido aquele lugar tinha para ela? Punição?

Não era assim com todos os bibliotecários. Certa vez, conheci uma moça, também em uma escola, que tinha o maior sorriso do mundo quando eu lhe chegava com doações. Ela abraçava os livros antes de colocá-los em cima da mesa. E eu sentia que ela era amorosa com eles, por isso eu doava para lá. Algumas pessoas defendem gatos, outras, cães. Eu defendo livros. Acho que eles têm de ser bem cuidados e bem cultivados. E essa moça me deixava sempre emocionada quando eu a via gostar daqueles objetos.

Certa vez, fui até lá, num dia de movimento, só para observar o que ela fazia enquanto as pessoas iam lá mexer, explorar, escolher, tirar do lugar. E eu via que ela se orgulhava, ela ficava numa alegria danada. E eu fiquei com meu coração bem tranquilo.

Uma coisa que me intrigava era que eu não via algumas dessas bibliotecárias lendo. Eu ficava pensando em como isso podia ser. Era como morrer de sede em frente a um tonel de água boa. Era um desperdício. Ah, como eu ia ficar sabida se eu tivesse de tomar conta de uma grande biblioteca. Eu ia, tenho certeza. E eu pensava: um bibliotecário precisa gostar disso, gostar de livros, gostar de textos, gostar de pessoas e ter um certo gostinho pela desorganização. Dessa forma, ele não vai sofrer quando as pessoas quiserem por vida naquele lugar de prateleiras cor de mate.

Até que, um dia desses, eu conheci um bibliotecário bagunceiro. Eu achei uma coisa tão engraçada que eu passei uns dias rindo daquelas moças que não gostavam de crianças indo ler na biblioteca. Eu sabia que o bibliotecário contava histórias e fazia os livros se moverem daqui para ali; ele lia os livros que ele guardava, então ele os conhecia e os fofocava para os leitores; e soube também que ele achava muito difícil por ordem nas coisas, e ele ainda me disse que achava muito tristes, quase mortas, as feiras de livros onde as pessoas não deixavam rastro, não passavam para mexer, pegar, ler e bagunçar. Foi aí que eu pensei que esse moço bem que podia ter estado em tudo quanto é canto onde eu fui levar minhas crianças, onde eu fui ler ou onde eu fui doar livros. Ah, como eu teria sido mais sabida com a ajuda de um desses!

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 18/10/2013

 

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