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Sexta-feira, 1/11/2013
A biografia possível
Marta Barcellos

Há cinco anos mantenho uma coluna de perfis na revista Capital Aberto. Isso significa ter escrito e publicado mais de 60 pequenas biografias "não autorizadas". O texto nunca é submetido aos entrevistados para aprovação. Do contrário, a seção jamais teria a qualidade que tem. Uma qualidade reconhecida por leitores e, ao final, também pelos biografados, que certamente teriam dado "retoques" ao texto se lhes fosse oferecida oportunidade para isso.

Para quem não é do ofício, pode parecer quase um detalhe "deixar o entrevistado ler". Não o é. O risco real de uma incorreção - que poderia ser apontada pelo biografado nessa "leitura inocente" - não vale o inevitável comprometimento de todo o trabalho realizado. Foi o que apontou o historiador e epistemólogo francês François Dosse, em entrevista ao jornalista Bolívar Torres: "Para um historiador e um biógrafo, fica impossível trabalhar com textos autorizados ou supervisionados, ou que dependam dos sentimentos dos biografados. É colocar uma mordaça no pesquisador", disse o autor de O desafio biográfico, obra considerada a biografia da biografia.

A liberdade do biógrafo é apenas um dos lados da questão - e o que considero mais importante, já que, além de o cerceamento inviabilizar o trabalho, existirá sempre o fantasma de que esta forma de censura prévia seja estendida a outras esferas. No entanto, há também o aspecto dos limites da invasão da privacidade, ao qual agora têm se agarrado aqueles que inicialmente defendiam a censura às biografias.

A forma mais fácil de sensibilizar uma pessoa que ainda não analisou o assunto das biografias em sua complexidade é fazê-la se colocar na pele de quem sofreu danos com esse tipo de invasão. Não por acaso, foi essa a estratégia que a empresária Paula Lavigne, líder do grupo Procure Saber, levou a um programa Saia Justa que se propôs a debater o tema. Sem qualquer justificativa ou contexto, Paula subitamente invadiu a intimidade da jornalista Barbara Gancia, perguntando se ela era mesmo gay assumida e qual o nome de sua namorada. Era a carta na manga da empresária: não havia como Bárbara se sair bem da situação. Se se recusasse a responder, pareceria uma contradição com relação ao seu posicionamento a favor das biografias livres. Mesmo respondendo, o constrangimento ficou no ar, e Paula triunfou: "Viu como não é bom?".

É aqui que gostaria de dizer, antes de defender com toda a minha convicção a liberdade total na publicação de biografias em livros, revistas ou quaisquer outras plataformas, que sou sensível ao tema da invasão da privacidade. Não endosso o argumento, também simplista em relação à figura pública, de que "quem está na chuva é para se molhar". Não existe essa regra de sair molhado.

Quando um jornalista, historiador ou pesquisador faz uma entrevista ou apuração sobre acontecimentos passados, ele sempre sente o peso de sua responsabilidade. Exceto se já tiver uma intenção maliciosa - como Paula tinha ao levar a pergunta pronta para o programa -, ele percebe o desafio de construir uma história na qual fatos e personagens sejam reconhecidos com verossimilhança por diferentes leitores - tanto aqueles próximos dos acontecimentos quanto os que terão acesso à história pela primeira vez. Quando escreve sobre algo que aconteceu, o jornalista 'sente' a presença ostensiva daqueles que podem contestá-lo ou serem prejudicados, como se estivessem em seu cangote. Repito, ele sente a responsabilidade. Isso faz parte de seu ofício.

Não adianta, neste momento, argumentar: ora, você é uma boa profissional; há também os negligentes e os maliciosos. Não podemos paralisar todas as atividades do mundo - incluindo a divulgação da informação - em nome da prevenção aos maus profissionais.

É impossível também que a legislação preveja e estabeleça de forma antecipada - outro tipo de censura prévia - a partir de quais "limites" da privacidade alheia podem agir os biógrafos maliciosos ou incompetentes. Até mesmo a vida sexual ou a ficha médica serão pertinentes se estivermos falando da biografia de Bill Clinton ou de Tancredo Neves. Por outro lado, como biógrafa responsável e sem interesse em sensacionalismo, já omiti declarações fortes dos próprios entrevistados por avaliar que elas teriam, escritas e destacadas de seu contexto, um impacto que não condizia com o perfil que estava sendo construído naquele texto.

Pois é, toda biografia é uma construção. Adoro o nome da minha coluna, Retrato, porque acredito que ele encerra o máximo de ambição possível diante de uma vida. Podemos, no máximo, pintar um retrato - utilizando nossas próprias cores e percepções. Podemos, no máximo, tirar um retrato - escolhendo ângulo, enquadramento, luz e sombras. Roland Barthes chamava de biografema esta opção pela narrativa-fragmento, que não tem a pretensão de dar conta de uma totalidade do biografado, ou de uma verdade objetiva.

É natural que o jornalista - assim como fazem hoje os biógrafos brasileiros castigados pela legislação que nos últimos anos tolheu o seu trabalho - se defenda com a afirmação de que persegue a Verdade. É como uma carta de boas intenções, uma forma de explicar o seu desafio diante do senso comum. No entanto, hoje, depois de um bom tempo de profissão e de algumas reflexões a partir de leituras teóricas, percebo claramente a ingenuidade desses termos. A Verdade não está na cabeça do biografado (basta ler autobiografias), tampouco na apuração o mais completa possível do biógrafo.

Trata-se, então, de escolher que tipo de sociedade queremos ser: aquela onde há um dono da Verdade ou aquela em que há pluralidade de verdades.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 1/11/2013

 

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