busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Sexta-feira, 8/11/2013
Até eu caí nessa
Marta Barcellos

Setembro de 2013: O milionário e playboy Chiquinho Scarpa anuncia que, a exemplo dos faraós, que enterravam fortunas para chegarem ricos ao reino dos céus, iria colocar sob a terra um de seus bens mais preciosos, um Bentley avaliado em R$ 1,5 milhão. Absurdo, claro, mas se tratando de uma celebridade excêntrica e meio esquecida, a história convenceu. A imprensa que cobre celebridades dispostas a qualquer coisa para aparecer divulgou e foi cobrir o tal enterro.

A pegadinha de Scarpa, pelo menos, era por um bom motivo, e a mídia espontânea foi gerada sem maiores constrangimentos. Um publicitário havia bolado toda a ação para divulgar uma campanha de doação de órgãos. Assim, no dia do enterro, fotógrafos e cinegrafistas a postos, Chiquinho anunciou, ao lado do carro e do trator que havia cavado uma cova em seu jardim, ter desistido da ideia. E lançou o tema da campanha, já impresso em farto material guardado dentro da casa: "Absurdo é enterrar algo muito mais valioso que um Bentley: seus órgãos."

Outubro de 2013: No dia do Enem, o estudante Flávio Queiroz, de 20 anos, chega atrasado a um dos maiores locais de aplicação da prova. Pendura-se nas grades do portão fechado, é fotografado pela imprensa que costuma ficar no local atrás desse "personagem", e dá as declarações esperadas: "Meu pai vai ficar muito bravo". E ainda: "Agora é estudar para as próximas." Só não conseguiu, nas matérias que se espalharam pela internet, muito destaque para o desabafo "Não queria fazer Mackenzie, que é minha segunda opção!". A encenação do estudante de ciências contábeis da USP era para zoar o Mackenzie, tradicional rival da sua faculdade numa competição universitária, e só foi descoberta dois dias depois. A foto de Flávio, empoleirado nas grades, saiu até na primeira página da Folha de São Paulo.

Novembro de 2013: A Veja São Paulo coloca em sua capa o "rei do camarote" Alexander de Almeida, que gasta R$ 50 mil em uma balada na cidade e aceita gravar um vídeo para a revista com os "dez mandamentos" de quem quer ostentar riqueza e status. Na internet, segue-se uma onda de indignação, outra de desconfiança e por fim Alexander sugere que tudo poderia ser uma pegadinha. O suspense se instala, à espera do próximo capítulo: Alexander poderia dizer que não é Alexander; ou, pressionado pela repercussão negativa, alegar que tudo se tratava de uma campanha de doação de órgãos ou de uma aposta feita com os amigos da USP. À revista, já beneficiada pela audiência, caberia provar que o personagem era "verdadeiro".

Daqui a um mês, mal vamos lembrar do rei do camarote. Mas ficará registrada, em algum lugar de nossos cérebros, uma experiência que se repete: acreditar, se indignar (ou se emocionar), descobrir que foi enganado por uma pegadinha (ou jurar que desconfiou desde o início), e até mesmo não concluir se era pegadinha ou não, antes de o assunto encher a paciência. Aos mais atentos, talvez restará a lembrança da versão "definitiva" do rei do camarote oferecida por alguma emissora de TV ou blogueiro bem informado.

A intenção aqui, ao destacar as três histórias, não é fazer uma crítica ao trabalho da imprensa, cada dia mais misturado à própria internet. É até curioso que não seja mais possível culpar a mediação da imprensa por tudo que se reflete nela, como fazíamos antigamente. Não faz sentido, por exemplo, uma pessoa reclamar do sensacionalismo da imprensa enquanto ela própria clica em links suspeitos, que infectam seu computador, por não resistir à promessa de sensacionalismo. Com a mediação pulverizada pela internet, e a sua concorrência, nem sei se ainda cabe a antiga discussão sobre o papel social da imprensa, que deveria de abrir mão da audiência fácil em nome da sua responsabilidade na construção dos valores de uma sociedade.

Pode-se, assim, afirmar que a história tola sobre o carro de Chiquinho Scarpa atraiu a imprensa porque ela avaliou - corretamente - que a notícia fabricada atrairia o seu público. Era "notícia" e pronto. Da mesma forma, o estudante pendurado na grade e o sujeito que queima dinheiro na balada também são "notícias". Para completar, as táticas do marketing de guerrilha, que existem há décadas, tentam se aproveitar dessa simplificação sobre o que é relevante ou interessante para as muitas mídias, com as brechas potencializadas pela velocidade da internet - que impede e nem valoriza as checagens da informação.

Até os mais experientes e espertos na internet já foram enganados alguma vez, se não com um falso personagem ou uma falsa notícia, com uma falsa corrente, uma fotomontagem ou (nos primórdios) uma falsa crônica de Luis Fernando Veríssimo. Na medida em que apuramos o nosso faro, as táticas para nos enganar também se aperfeiçoam.

Onde isso vai parar? Não resta mais dúvida que a tecnologia e a internet - hoje, especialmente, as redes sociais - têm a capacidade de mudar comportamentos, moldar valores, criar novos vínculos sociais. A questão é se vamos nos acostumar a um mundo de muitas versões e incertezas - até porque estamos nos divertindo com paródias e ironias - ou se de alguma forma a credibilidade e a autoridade continuarão a ser relevantes.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 8/11/2013

 

busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês