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Segunda-feira, 25/11/2013
Jardim da Infância
Ricardo de Mattos


Ferenc Molnár

"Uma criança está deixando de ser criança no dia em que começa a fazer perguntas que têm respostas" (Millôr Fernandes)

Este foi um ano particularmente indigente de leitura. Indigência aflitiva, pois apesar de conseguirmos reunir obras que mais chamaram-nos a atenção, ou das quais precisaremos no futuro próximo para estudos aprofundados, nosso acesso a elas foi impedido por mil e uma contingências. Por vezes tomamos um livro, folheamos, cheiramos as páginas, lemos um trecho aqui e ali. Entretanto, somos obrigados a largá-lo. Mesmo a leitura noturna foi lenta e com frequência interrompida pelo sono. Livros há que admiramos melancolicamente ao abrir um armário e reencontrá-los ali, prontos para serem fruídos e devassados. Livros que, de tão suculentos, ativam-nas glândulas salivares. Livros que, superado um último, inesperado e infernal obstáculo, resgatarão o tratamento digno que lhes é devido.

O espírito tem fome, e sua fome específica por leitura, si não pode ser saciada, ao menos pode ser atenuada. O curioso foi tornar aos poucos volumes lidos e percebermos que, em sua maioria, referiam-se a crianças e adolescentes. O Jardim Secreto, da inglesa Frances Burnett. O Rei Branco, do romeno György Dragomán. Dibs - Em Busca de Si Mesmo, da norte-americana Virginia Axline. E Os Meninos da Rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnár. Curioso, também, observar que este foi o ano que estagiamos em meio a crianças e adolescentes. Conscientemente, não há uma relação causal. Desconfiamos, porém, que alguém quis provocar-nos a pergunta: "E as crianças hoje, deste trecho de terra, como são"?

O livro de Burnett traz em meio ao enredo suas concepções filosóficas e educacionais, no sentido de que, si é necessária a educação formal, esta não pode dispensar o contato estreito com a natureza e aquela convivência com as pessoas que permite ao mais jovem inteirar-se da vida social a sua volta. Em termos de conteúdo, o escrito vai muito adiante do filmado. Grande leitura. O mesmo movimento do interior para o exterior verifica-se no livro de Axline, ao mostrar a trajetória existencial do conturbado - mas depois fortalecido - Dibs. Esta coluna desejamos dedicá-la aos livros dos dois escritores citados: Dragomán e Molnár.

György Dragomán nasceu na Transilvânia, Romênia, em 1973. Depois mudou-se para a Hungria, trabalhando hoje em Budapeste como jornalista, escritor, tradutor, crítico de cinema, intérprete e web designer. O Rei Branco data de 2005, chegando ao Brasil em 2009. Encontramo-lo numa livraria, sem que tivéssemos qualquer referência anterior sobre o autor ou a obra, justamente o que nos motivou a trazê-la conosco. Narra a trajetória do menino Dzsáta, cujo pai foi levado pela polícia estatal para um campo de trabalhos forçados e a mãe é relegada ao desamparo pelos próprios familiares. Si considerarmos a adolescência como o período de tempo necessário para a criança sair de seu mundo mágico e adentrar ao mundo adulto, sendo esta entrada caracterizada pela ampliação da consciência em relação ao que ocorre à sua volta, não será errado entender que o processo de Dzsáta realizou-se com passos mais largos: o avô que o ensina a atirar - e ao mesmo tempo livra-se de um gato incômodo -; a mãe que procura um funcionário disposta a trocar favores pelo marido; o cínico orador do funeral do último capítulo; a saudade do pai usada como motivo de brincadeira pelos "amigos". Ao mesmo tempo, Dzsáta dá ouvidos ao chamado da adolescência em capítulos como "Guerra", "Abundância" e "Cinema". Temos uma obra trágica, salpicada aqui e ali pelo humor involuntário decorrente de alguma situação.


György Dragomán

Já no livro de Molnár (1878-1952) encontramos um clássico. Foi escrito em 1907 e Paulo Rónai, seu tradutor, informa que se trata de uma das poucas obras a transpor a barreira idiomática e conquistar leitores nos demais países da Europa e, depois, do mundo. Narra a defesa de um terreno vazio - o grund - por um grupo de meninos que nele estabeleceu-se para brincar e passa a ser ameaçado pelo grupo rival. Não é obra de recente apresentação ao público brasileiro. Na verdade, foi vertida para o português por Rónai em 1952 e lançada na velha "Coleção Saraiva". Conforme o hábito da época, o nome do autor também devia ser traduzido, de forma que a brochura veio encabeçada pelo nome "Francisco Molnár". Felizmente, foi reeditada em volume mais caprichado.

A batalha cuja preparação, realização e desenlace são narrados n'Os meninos da Rua Paulo pode ser compreendida no sentido real e no simbólico. No sentido real, pois Rónai assinala a presença de traços autobiográficos no correr do texto, alertando o jovem Molnár deve ter participado da batalha com os meninos. No sentido simbólico, como retrato da instabilidade política húngara da época, instabilidade interna a qual se somaria a externa, sete anos depois. Não raro, um menino ou outro exalta-se ao referir-se à defesa do terreno como à defesa da própria pátria expressando assim o sentimento nacionalista de então. Considerado o século entre a escrita e hoje, Molnár por vezes exagera ao retratar seus possíveis amigos como pequenos napoleões ou césares. No geral, é uma crônica divertida sobre jovens que precisam fazer primeiro o dever de casa para depois guerrearem.

Memórias

[1] Estávamos sentados em meio ao arvoredo. Folhas secas aos montes pelo chão, que empurrávamos distraído com um galho. Perto, dois meninos usavam algumas destas folhas para jogar "bafo". Si usassem figurinhas, quem perdesse começaria a resmungar, chamaria os pais e a irresignação poderia ser levada longe, causando desconforto para a instituição onde todos estávamos. Ou confusão entre eles, fora dali. Foram chamados, mas antes de atender, fizeram questão de esconder as exatas folhas que utilizavam. "Esconde bem para ninguém pegar", foi o que um recomendou ao outro. "Tio, toma conta?". Pode deixar.

[2] Mesmo local. O garoto N passou como um azougue. Como não lhe vimos o rosto, não fizemos conta. Então C avisou: "N está chorando". Fomos verificar. Que foi, que não foi... "São aqueles dois, tio", respondeu com abundantes lágrimas gotejando do queixo. "A tia parou o jogo, eles falaram que foi por minha causa e que por causa disso não vão mais falar comigo". Isso passa, há outros com os quais brincar. "Não entendo, tio. Eu fiz tudo por eles. Eu dei dinheiro para eles. Eu percebi que M fica triste quando tem bazar da pechincha, porque não podia comprar nada. Uma vez eu trouxe dois reais e falei que ele podia usar um real, tio! Eu ensinei muito para eles... Agora eles fazem isso"! Não esquenta, dê tempo que eles entendem o que se passou e voltam. Tanto N chorou que C, a princípio irônico, compadeceu-se: "Você pode ser meu amigo e brincar comigo, se quiser". N respondeu: "Não dá, você não é como eles"!

[3] Dia de evento num dos Centros Espíritas taubateanos. Fomos buscar aquela que Deus fez companheira de nossos dias e sua sobrinha. A menina aparece vestida quase toda de branco, parecendo uma assombraçãozinha. Nas mãos, o guarda-chuva preto e retrátil do avô. Reparamos no objeto, visto que nem chovia. "Herança sua", respondeu nossa Lily.

[4] Tarde de festa de Cosme e Damião no terreiro de Umbanda de nossa afeição. As entidades manifestaram-se como crianças. Um menino adentra teso ao recinto. O "espírito-criança" enche a mão de guaraná e passa-lhe no rosto. O menino gargalha relaxado. Nossa Lily acompanha-nos o gosto pela camisa xadrez. O médium volta-se para ela e a "criança" pergunta com a voz esganiçada: "Vai dançar quadrilha, tia"?

[5] Fomos salvos pela questão temporal. Fizessem hoje o que fazíamos há trinta anos e não safariam ilesas. Ou talvez façam e saiam ilesas do mesmo jeito... Como no caso de L, que todos decidiram ser gay. Si era ou não, não importava. Para nós ficou decidido que era, e como tal passamos todos a tratá-lo, com o preconceito declarado de então. Crianças podem ser cruéis. E são, quando ninguém está olhando. A vergonha maior foi uma menina chamá-lo de "bicha". Grave não era ser chamado de "bicha", mas sê-lo por uma menina!

[6] Mesma classe escolar. Dez, onze anos. Uma colega volta das férias com os seios despontados. Recomeça as aulas com suas duas perinhas. Todos os meninos foram apertar para conhecer a novidade.

[7] M vinha da banca de jornais com uma revista Cláudia nas mãos. Doutra vez, fora visto com um exemplar de Casa & Jardim. Passou mais um tempo e é a vez de uma Marie Claire. "Vem cá, M, 'que que' você está aprontando"? Meio constrangido, meio rindo, entrega a revista. M rompera apenas a parte de cima da embalagem e, no meio das páginas de insuspeitas revistas, escondera outras bem menores, cheias de fotos, com pouco texto, e que não eram nem Caras nem congêneres.

[8] Anos depois. O outro era apenas lerdo. Chamávamos "lerdo" no sentido atual de "sem noção", caso esta expressão ainda seja empregada. E ele dava azo à chateação. Terminada a aula, deixava seus óculos sobre a carteira e saía da sala. Sabia que todos os meninos - e algumas meninas - que vissem os óculos iriam pegá-los pelas lentes, com as mãos bem engorduradas. Alguns passariam o dedo no lado mais oleoso do nariz e esfregariam nas lentes. Mas ele deixava-os lá assim mesmo. E antes de começar a aula seguinte, precisava sair para lavá-los.

[9] O mesmo lerdo dos óculos. Por ocasião da formatura, alugamos nossos smokings pretos. Decidimos todos, porém, que ele deveria ir de smoking branco: casaco e calça. Visando maior eficácia, não falávamos para ele do traje. Comentávamos entre nós, perto dele. Alegávamos dificuldades em encontrar a roupa, necessidade de emprestar os sapatos brancos de parentes médicos e dentistas, etc. Cínico, alegamos que o nosso precisou vir de cidade vizinha. Uma colega compadeceu-se e alertou: "Olha, P, eles estão de sacanagem. O smoking é preto mesmo, viu"? P não acreditou e acusou-a de tentar enganá-lo. "Então vai de branco mesmo, trouxa"! Foi necessário a orientadora mandar a irmã mais nova de P avisar em casa que seria preto o smoking.

[10] Tivemos nossa quota. Ninguém que tenha Pinto como um dos apelidos de família pode esperar uma infância e uma adolescência tranquilas. O erro fatídico foi não levar na brincadeira. Na época do ensino médio, a sala estava num de seus dias de alvoroço. Professor de Física impotente perante os alunos. Era o segundo do ano, recém-chegado. Um engraçadinho aproveita e aponta-nos: "É ele que está fazendo zona, 'fessor'! Põe o Pinto pra fora!" O professor não entendeu.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 25/11/2013

 

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