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Quinta-feira, 19/12/2013
A vida muda no ponto
Elisa Andrade Buzzo


ilustra: Renato Lima

Não vou negar, a despeito de todas as críticas que tenho ouvido e lido, seja nos jornais ou pelos amigos: eu gostei. Gostei e mais ainda, além de ter gostado acho que ficaram muito bonitos, funcionais e belos, sim. Claro que um dia posso mudar de ideia e verificar as inúmeras falhas de um projeto numa cidade destroçada. A cidade muda mesmo, e ainda bem, ainda bem que sim e uma pena que sim, mas que seja para o melhor ao menos, pois do contrário como seria estarmos em lentas carroças nos dias de hoje? (Talvez o trânsito ainda nos dê esta ideia de lentidão tão seguidamente...) Ah, e pensar que pobreza só e que calmaria era a vida rústica dos paulistas nos tempos de vila.

Recebo a notícia da troca de abrigos e pontos de ônibus da cidade com certa alegria; talvez uma alegria infantil de quem ganha um presente novo, inusitado. Ninguém sabe ao certo se embaixo dos abrigos para quem aguarda os ônibus na cidade realmente fica mais quente do que fora deles, mas parece haver um acordo velado e implícito de que tudo há de ser errado nesta cidade, uma má vontade e um sarcasmo cínico por parte dos jornalistas e da população diante de tudo o que possa e há de ser feito. Comodismo, desinformação e os pontos novos já chegam malhados.

Corro para testar estes quadrados de vidro, que aos poucos foram surgindo após serem divulgados seus projetos pela prefeitura. São quatro modelos criados por Guto Índio da Costa: caos estruturado, brutalista, minimalista com ginga e hi-tech. De início, eles são raros, passando por algumas avenidas movimentadas posso entrever entre os vidros dos carros suas estruturas muito claras e envidraçadas. O novo ponto, ou totem, é uma estrutura acobreada com uma simpática fronteira de ônibus pintada em amarelo logo acima. A reclamação de sempre: informações sobre itinerários que, quando constam, são logo vandalizadas.

Mas isso é problema que vem desde os pontos antigos, modelos vários de administrações várias, cada um deles moldado conforme o mal gosto de sua época, meras barras de concreto alinhavadas por um telhadinho ondulante. Mas era bom, sim, num dos mais recentes de seus modelos sentar-se não no banco específico para se sentar, mas em sua estrutura lateral. Ou seja, a população acaba encontrando modos de se adaptar da forma mais confortável, intuitivamente, a um design malfeito. Tenho a sensação de que agora, com este novo projeto requintado de abrigos sendo colocado em prática desde fevereiro deste ano passamos a um novo estágio citadino, deixamos de vez de ser uma vila com ares coloniais...

Ah, as matérias de jornal insistem em depoimentos da população preocupada e parcimoniosa com o patrimônio público, "não dou dois dias para quebrarem este vidro". Ainda não vi o vidro dos abrigos quebrados, antes o vidro de uma propaganda (sim, estes pontos tem espaço para publicidade, e acho que em nada enfeiaram a cidade), mas muitos já riscados. Mas então isso seria motivo para não mudar os pontos nunca, não modernizar a aparência da cidade? O caos aqui se aprofunda plenamente, ainda assim não vamos deixar de pintar as faixas dos carros e as de pedestre nas ruas porque as rodas vão passar por cima delas e aos poucos apagá-las...

Os operários fazem parte dessa paisagem fundante. Quantos deles vemos nas rua; à noite, antes do anúncio da madrugada, um grupo desfaz um antigo ponto, cortando aos poucos as peças; depois, soldando a nova estrutura, pronta a ser dada como coisa nova, inédita e prestes a ser inaugurada pelo primeiro cidadão que lhe apoiar o traseiro. No amanhã já teremos esquecido dos braços e parafusos cerzindo a linha do tempo. No hoje resquícios nominais temos de quanto trabalho braçal de tantas épocas tivemos para soerguer este monumento de vida e morte em que vivemos, que é a cidade grande.

E assim vamos vendo estes operários montando, remotamente, como numa aventura proibida e provisória, os abrigos. Paradoxalmente trabalham como seres invisíveis, o povo sem interesse algum pelo que fazem. Num dos pontos grandes da Paulista, em frente à Casa das Rosas, ainda subsistiam antigos abrigos aos quais já estávamos acostumados. Dia desses: surpresa. Um grande tapume anuncia as obras, há um extenso buraco no chão onde operários de macacão cinza e capacete azul colocam as bases das novas estruturas desta cidade que, afinal, ainda se constrói e prosseguirá sua reconstrução infinitamente.

Então, estou vendo coisa talvez mínima, mas vendo algo ser construído, posto como novidade em meio a este meio que me circunda. Como se pudesse as choças dos paulistas ver sendo erguidas, da palha do barro e do chão ostentar a singela e rude construção e, agora, do metal forjado e do vidro ter como outra casa, outro abrigo. Entro, aliás, em um deles pela primeira vez, sento com certo cuidado e candura no banco de pedra, pedra. Sinto estar lá, estar aqui, agora e na extensão que une a indiada, os brancos e os mamelucos todos e, por dentro daqueles vidros, me invisibilizo.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 19/12/2013

 

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