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Terça-feira, 11/2/2014
Origens: minha mãe
Jardel Dias Cavalcanti

Aquilo que Freud chamou de "romance familiar" é de extrema importância na minha formação. Os laços que se constituíram entre mim e, principalmente, minha mãe, com certeza determinaram muito do que eu sou hoje. Da relação real às fantasias em torno do que é o "afeto materno", percebo aquilo que está gravado em mim, da genética à formação social, cultural e emocional, me tornando aquilo que sou.

MINHA MÃE:

Minha mãe é, com absoluta certeza, o elemento mais importante naquilo que vou chamar de "minha formação existencial". Desde as sensações mais físicas (carinho, calor humano, olhares ternos) até a percepção da natureza e da cultura e de como deveria ser minha relação com as pessoas, foi a influência maternal, de fato, o elemento mais determinante.

As sensações físicas prazerosas que provêm do abraço materno, do cuidado da minha mãe comigo ainda criança, seja nos momentos de febre, ou apenas arrumando meu cabelo, vestindo minha roupa ou me dando banho, ficaram registradas na minha vida como proteção. E minha mãe foi prodigiosa nessa parte. Eu sempre a senti como protetora, por seu calor físico, pela entonação da sua voz, pelo seu olhar sempre doce em relação a mim. Quando encontro na vida uma mulher que traduza esse conforto sensorial, ela me tem como seu prisioneiro.

Outra dimensão importante que minha mãe me trouxe foi a da fantasia. Nunca vi uma pessoa tão fantasiosa como minha mãe. A sua capacidade de quase criar literatura com os fatos mais banais da existência, seja contando uma cena bíblica ou relatando um caso ouvido pelas vizinhanças, ou sua concepção de religião (todas, pois ela acredita em todas as superstições possíveis), é tudo marcado por uma enorme capacidade de improvisar fantasias. É daí que percebo em mim a mesma capacidade de fantasiar sobre qualquer coisa, desde uma ideia filosófica até a cor de uma fruta, uma paisagem, uma composição musical que ouço, o trecho de um livro que li ou a passagem de uma mulher à minha frente.

Outra característica transmitida a mim pela minha mãe é seu interesse por todos os assuntos: ciência, religião, história, música, línguas estrangeiras. Minha mãe bisbilhoteia revistas, livros, panfletos, tudo o que lhe vier à mão, contanto que lhe passe algum conhecimento. Faz isso com a naturalidade de quem deseja conhecimento, pura e simplesmente. Minha biblioteca espelha bem isso. Leio livros sobre história, filosofia, ciência (física, neurociência, botânica etc), educação, arte, tudo o que é conhecimento me interessa. Curiosidade que minha mãe me transmitiu. O sonho dela era ser médica, poder estudar, mas isso lhe foi tolhido pela situação geográfica e familiar. Mas o desejo de saber, de entender a natureza do corpo humano, a saúde, ou mesmo acontecimentos prosaicos, jamais a abandonou. Outro desejo frustrado foi o de falar francês, que ela aprendeu sem muito aprofundamento com um farmacêutico que a empregou em sua farmácia. Daí, talvez, meu interesse pelo francês, de tanto ouvi-la contar essa história da aprendizagem na farmácia (embora a literatura francesa, meu universo literário predileto, também seja determinante).

Minha relação com as mulheres também sofre a influência das palavras de minha mãe. Sua frase gravada em meu inconsciente é: "Sempre procure tratar bem as mulheres. Lembre-se que sua mãe é uma mulher". Então, são duas influências: a do calor humano que busco nas fêmeas, quase como que buscando a sensação (proustiana) daquele amor maternal, e o trato sempre delicado com as mulheres (que talvez me torne aos olhos delas um homem meio feminino).

Outra influência diz respeito ao meu interesse por objetos bonitos, como caixinhas, latinhas, invólucros de sabonetes, flores etc. Minha mãe sempre gostou de coisas rococós, coisas fofas e delicadas. Meu gosto por detalhes, pela conformação das coisas, de uma capa de CD à capa de um livro, de uma caixa de chá até um castiçal ou objeto de porcelana, ou a pintura de Fragonard, eu devo a ela. Minha visão do paraíso é a casa de dois amigos, o Ronaldo Oliveira e o Ronald Polito, que possuem uma coleção inacreditável de objetos maravilhosos. Quanto aos cheiros, também minha mãe determinou esse gosto. Sou obcecado por sabonetes perfumados, perfumes e talcos ingleses (e seus respectivos invólucros, evidentemente). Porque não virei gay é um mistério que nem a psicanálise resolveria.

Outro fator bastante importante na questão da influência de minha mãe sobre mim é o seu amor à vida. Não no sentido de uma defesa religiosa da existência, mas de um amor orgânico à própria vida nesse planeta. Apesar de acreditar na vida após a morte, minha mãe não abriria mão dela, por mais terrível que fosse, em troca do conforto celeste. Ela prefere viver o inferno aqui na terra a abrir mão da calmaria que o suposto céu lhe ofereceria. O prazer pela comida é um derivado desse amor. Ela desfruta dos alimentos com tanto prazer que vejo aí a manifestação mais direta desse amor à vida. Minha mãe, por isso, jamais seria uma suicida. E este sentimento passou para mim de forma irrevogável. Eu poderia estar na pior das situações, mas ainda assim eu resistiria pelo simples prazer de estar vivo, organicamente vivo; eu poderia perder tudo, mas minha fé na existência orgânica e minha descrença nos valores sociais (dinheiro, posição social) derivada dessa crença na vida orgânica me afastaria de por um fim a minha vida. Por isso não me assusta ver mendigos, na pior das situações, ainda resistindo a um salto mortal diante de algum carro.

Sartre disse no seu livro As palavras que o fato de não ter tido pai o livrou do superego e o fato de ter convivido com mulheres (mãe, tias) o tornou bastante sensualista (daí seu interesse pela fenomenologia?). Minha relação com o mundo é muito corporal por causa de minha relação com a minha mãe. Eu toco nas pessoas, eu gosto de abraçar as pessoas, sentir seu calor, sua presença física. Toco também nos objetos inanimados (livros, mesas, objetos decorativos, para poder sentir sua dimensão física) e nos orgânicos (frutas que olho, toco e cheiro com enorme prazer).

Mais importante que tudo, é sua visão positiva sobre o futuro. Minha mãe não tem nada de pessimista, nunca teve. Passou por situações graves para cuidar da família e nunca titubeou. Manteve-se forte, passando para os filhos uma visão otimista do futuro. Sua frase predileta, nesse sentido, é: "Nada como um dia após o outro. Tem dias que chove, mas, em seguida, vem o sol".

O psicanalista reichiano José Ângelo Gaiarsa gostava de dizer que pior que a autoridade do pai era o amor da mãe. Porque contra a autoridade do pai se pode lutar, mas contra o amor da mãe não. O amor da mãe seria uma forma mais sofisticada de poder, pois ela o usaria (o amor) para nos controlar com chantagens emocionais: "É porque te amo que faço isso". No caso da minha mãe, sei que em determinadas situações ela usou o amor para me tornar "um bom menino". Mas nunca senti que chegasse a ser algo letal. Ao contrário, sua visão afirmativa da existência parecia guardar algo de mais essencial para minha formação. Uma espécie de ateísmo vital, ou seja, a ideia de que a vida vale mais do que qualquer outro valor. Por isso meu ódio às guerras, torturas, mortes - em nome de que? Não da vida, com certeza. E por isso minha crença na denúncia dos sistemas totalitários, autoritários, antidemocráticos ou simplesmente fascistas, como o capitalismo, que transforma a vida numa mercadoria como outra qualquer, a ponto de justificar o assassinato de seres humanos, de justificar as diferenças sociais, ou impedir o princípio da existência: a expansão livre da vida.

Meu humanismo deriva do calor humano que me foi transmitido diretamente do corpo de minha mãe para mim. Amor para mim é preservar a vida, acima de tudo. Eis sua sabedoria.

Jardel Dias Cavalcanti
Canoas, 11/2/2014

 

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