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Quarta-feira, 30/1/2002
Somos diferentes. E daí?
Daniela Sandler

Alguém terá de me convencer de que eu devo levar a sério essa história de guerra dos sexos. O tema rende ótimas piadas, não há dúvida – da memorável novela da Globo, com Fernanda Montenegro e Paulo Autran, à mais recente coluna de meu colega Rafael Lima, sem contar os inúmeros exemplos hilários de que vocês, leitores, irão se lembrar ao pensar no antagonismo entre homens e mulheres.

Não que humor não seja sério – aliás, pode ser uma das formas mais eficazes de comentar criticamente assuntos importantes. Nem sempre, porém – às vezes, assim como charutos, uma piada é só uma piada. Em relação ao antagonismo dos gêneros, se decantarmos a gozação, não sei se sobrará muito mais do que esquetes engraçados – além de um fundinho amargo, talvez...

Historinha sem fim

Juro que tentei levar a questão a sério. Pensei nas principais contribuições ao entendimento do tema - por exemplo, o feminismo. Recapitulando sua versão dos fatos: quase todas as sociedades são patriarcais, e a influência masculina se estende da dominação física à hegemonia cultural – a História e a Bíblia foram escritas por homens, e somos impregnados pela visão de mundo machista desde o berço, tanto na formação intelectual quanto religiosa. Nessa linha, as relações sociais, as características pessoais e os laços familiares seriam moldados pela opressão masculina – sem contar os mecanismos concretos de dominação, da força física à chantagem econômica. Não estou dizendo que isso não faz sentido – ajuda a entender muita coisa, e tem importância histórica (e prática) para a emancipação de muita mulher oprimida ou discriminada pelo chefe, marido, pai etc.

Mas essa historinha não dá conta de tudo, porque ignora nuances, contradições e particularidades, e encaixa todo mundo – homem e mulher – em estereótipos tão simplistas e preconceituosos quanto aqueles cunhados pelo machismo. Se tomada ao pé-da-letra, a crítica feminista é tão útil para entender a tal guerra dos sexos quanto aqueles livros que dizem que homens e mulheres são de planetas diferentes ou que nos dividem em “Ele”, “Ela” e “Nós”.

Boneca versus carrinho

Quando escapamos dos estereótipos – tanto os feministas quanto os machistas –, o que nos resta a dizer sobre diferenças entre homens e mulheres? Sim, claro, somos diferentes – mas diferença não significa apenas diferenciação sexual. Somos diferentes em inúmeros aspectos, somos similares em tantos outros, e não (apenas) porque somos homens ou mulheres.

Para a “guerra dos sexos”, no entanto, diferença é uma divisão binária – restringe a variação a uma oposição dual e maniqueísta. Rosa X azul, boneca X carrinho, delicada X tosco, irracional X racional...

Ora, a variação humana é muitíssimo mais rica que isso – muito mais rica, aliás, que outros reducionismos binários como adulto X criança, hetero X homossexual, teoria X prática, cerebral X emocional, físico X imaterial. O problema dos dualismos é que, além de reducionistas, enxergam a “diferença” como “oposição” – como antagonismo, exclusão, embate... como guerra.

Uma digressão triste: não só no caso dos sexos, muita gente ainda parece dar às diferenças essa conotação belicosa – é só pensar nos conflitos entre raças, religiões, nações e ideologias (não vou entrar, nesta coluna, na discussão das grandes e das pequenas diferenças – fica para outra vez). Mas, voltando a homens e mulheres, suspeito que boa parte das hostilidades mútuas tenha a ver com rivalidade – com a raiva que muita gente talvez sinta, sem perceber, de precisar do “outro”, de não ser auto-suficiente.

Quando um não quer, dois não brigam

Especulações à parte, a coisa mais fácil é transformar diferença em problema. E eu poderia dar mil razões humanitárias para mostrar que diferença não é problema, que deve ser respeitada, incorporada, talvez até celebrada. Mas começarei por uma razão simples: não devemos fazer da diferença um problema porque a diferença é inevitável e ubíqua. Quero dizer, se formos criar caso por isso, passaremos a vida brigando. Convivência, entendimento, união de esforços – nada disso é fácil, mas fica mais difícil quando há antagonismo e resistência.

Dualismos como a guerra dos sexos revelam, pelo elogio de um dos termos, o ódio à diferença – e abrigam o impulso de apagar a variação, de transformar tudo em “igual”. "Igual", claro, ao termo classificado como “bom”. O rolo compressor da homogeneização está onde a gente menos suspeita! E a possibilidade de libertação também. Uma das linhas esquecidas de Karl Marx dizia que, numa sociedade comunista, o direito, em vez de ser “igual”, teria de ser “desigual” – porque os homens são diferentes. Não é à toa que a França, onde se proclamou a igualdade dos homens, inventou outro mote famoso, o “Vive la difference”.

Não, ninguém ainda me convenceu a levar a guerra dos sexos a sério. Aliás, pensando bem, acho que nem mesmo as piadas têm me feito rir muito...


Daniela Sandler
Rochester, 30/1/2002

 

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