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Sexta-feira, 14/3/2014
Quase cinquenta
Marta Barcellos

Um texto inspira o outro. Talvez os leitores do Digestivo não saibam como acontece a dinâmica que gera "especiais" por aqui, mas quase sempre é assim: um assunto do momento rende um debate ou um primeiro texto, que alguém do grupo de colunistas elogia ou comenta. A repercussão leva o editor Julio Daio Borges, ou outro, a sugerir o lançamento de uma série "especial", com uma pauta/convite aberta a todos os colaboradores.

Particularmente, não sou muito afeita a temas autobiográficos. Já tive meus tempos de blog, e hoje sou discreta nas redes sociais. Na verdade, ando tentando trilhar um caminho inverso: esquecer um pouco de mim mesma, sair do sufocante - e às vezes tentador - atoleiro narcisista que domina nossos tempos, me deixar atravessar por "outros eus", assumidamente inventados ou não. Enfim, ficção - como diria Eduardo Coutinho sobre os personagens de seus "documentários", que recebiam carta branca do cineasta para inventarem suas próprias narrativas autobiográficas.

Mas não tem jeito; são os nossos tempos. Há que se encarar o interesse autobiográfico. Consegui, sem esforço, fugir do apelo para falar das minhas origens familiares, mas fui fisgada pelo debate em torno da idade, que afinal nem sei se vai render um "especial". Afinal, como eu dizia lá em cima, é sempre um texto (no caso, um depoimento) que inspira outro texto. Ou não.

Explicando melhor: Julio escreveu sobre seus 40 anos, e, diante da boa repercussão, propôs um especial "Idade". Duanne Ribeiro apresentou um motivo para declinar que lhe pareceu óbvio: tem apenas 26 anos. Nem data redonda é. Mesmo assim, alguns depoimentos se seguiram naquela troca de e-mails, em torno das vantagens da maturidade - quando já se sabe o que se quer da vida. É mesmo provável que os mais velhos não tenham muito interesse nas reflexões sobre idade dos mais novos.

Foi aí que o meu "eu", o tal que eu pretendia esquecer, botou as manguinhas de fora. "Ah, eu já passei dessa fase saber o que se quer da vida" - ele se gabou, no diálogo imaginário com o grupo. Como aconteceu com o Júlio, pintou um medinho de adotar "discurso de velho", e não entrei no debate naquele momento.

Dizem que velho é a pessoa com 20 anos a mais que você (sim, Duanne é velho para alguém). Então, para mim, velho é o sujeito com 68 anos, especialmente aquele que afirma coisas como "no meu tempo é que a música era boa" ou "a internet afasta as pessoas". Bato na madeira três vezes e penso nas estratégias para chegar lá sem me transformar nesse tipo de velho. E, claro, torcer para as pessoas de 28 anos, as tais para quem sou irremediavelmente velha, me acharem moderninha, cabeça aberta ou sei lá que gíria elas usam no momento...

Mas não vou me perder, antes que alguém (jovem) pense que (já) estou com problemas de memória. O comentário que me havia provocado para o debate sobre idade dizia respeito a não se perder mais tempo com o que não vale a pena, ou não se gosta. Na maturidade, não temos tanta necessidade de agradar os outros, e o autoconhecimento costuma ser suficiente para se fazer opções melhores, aquelas com mais chances de nos fazer nos tornarmos nós mesmos. Sim, eu me lembro de alguma idade passada em que senti fortemente este sentimento: por que estou perdendo tempo com essas pessoas de quem não gosto?, por exemplo. E a descoberta da liberdade inesperada me encheu de alegria.

Assim foi. Acredito que fiz boas opções nesta virada para a maturidade. Pode ser que aquela tenha sido a minha idade do "sol do meio dia", o tal momento exato em que as sombras desaparecem, e nada se esconde, marcado pelo meio do caminho da vida, referido por Nietzsche. Só que existe um complicador para se estabelecer o momento certo da crise e das reflexões da meia idade: quando será exatamente o meio do caminho da nossa vida? Aquele em que podemos planejar uma "vida nova", a segunda metade de nossa vida?

Dante tinha 35 anos quando escreveu o primeiro verso da Divina comédia, "No meio do caminho de nossa vida". Quando Barthes, inspirado por Dante, começou a desenvolver um projeto de "Vita Nova", de suposta preparação de um romance, já passava dos 60 anos. Morreu no ano seguinte ao anúncio de seu plano, atropelado por um ônibus. Em A preparação do romance, ele justifica o seu projeto lembrando que o sentimento de ser mortal não é "natural": a consciência de que "os dias estão contados" só costuma se dar a partir de certa idade. Será esta a idade ideal para reflexões?

Bem, reflexões são sempre bem vindas - e o leitor deve sempre estar atento às possíveis sombras, no caso de elas não terem sido geradas exatamente ao meio dia. Pois, como eu ia dizendo, fiquei feliz quando percebi já saber do que gosto, o que quero etc. Mas depois... bem, percebi que, se só fizesse o que gosto, eu não descobriria as coisas que ainda não sei que gosto. Então é ótimo não perder tempo com automatismos bobos, comportamentos no fundo impostos pela sociedade, pela família etc - mas também é bom estar aberto para experimentar algo que talvez não seja bom.

Os tais "velhos" de 68 anos que se tornaram meu antiexemplo se acomodaram nesta suposta felicidade de saber do que gostam. Se já descobriram a boa música, por que escutar este barulho de hoje em dia? Eu, no entanto, sei hoje, definitivamente, que não sei tanto assim sobre o que gosto, e que ainda preciso experimentar de quase tudo, para nunca saber de nada. "Definitivamente?" Escapou, sorry. Se eu tiver alguma certeza definitiva prometo escrever sobre a minha crise dos 50, no ano que vem. Quem sabe consigo a atenção daqueles que ainda não chegaram lá.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 14/3/2014

 

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