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Sexta-feira, 25/4/2014
Desejo do momento é o caramba
Marta Barcellos

Depois de onze anos fora, morando em três países com culturas bem distintas, minha amiga estava voltando, feliz da vida, ao Brasil. Saudades do país, sim, mas feliz também porque nos últimos três anos estivera nos Emirados Árabes, com direito a todo tipo de experiência desagradável - para dizer o mínimo - que uma mulher ocidental vivencia por lá. "Vamos nos ver!", passou a escrever, logo que soube a data do retorno. No entanto, quando chegasse, imaginei, sua vida seria uma loucura: procurar apartamento e escola para a filha, além de emprego para ela própria - só o marido já tinha um trabalho em vista.

Mal se instalara, pediu-me dica de babá para poder sair com marido à noite, no estilo baby sitter ao qual estava acostumada. Telefonou para a ex-babá da minha filha, acertou tudo e imediatamente propôs uma data para jantarmos em um restaurante que ela queria conhecer em Ipanema. Nossa, que rápido, pensei. É raro as coisas serem tão descomplicadas. Mas ainda poderia acontecer um imprevisto de última hora - e me preparei para ter um plano B naquele sábado.

Quando chegamos ao restaurante, com a pontualidade da qual às vezes me envergonho, ela já estava lá com o marido. Fiquei surpresa. Tivemos uma noite ótima, cheia de histórias exóticas sobre morar em Abu Dhabi, bem diferente da Escócia, onde a filha nascera, e de Paris, cidade do marido. Carnaval chegando, ela comentou que gostaria de levar a menina a um bailinho infantil, e ficou contente quando contei que haveria um no clube do qual somos sócios. No Rio, às vezes também me envergonho de ser sócia de clube, e logo justifico que é por causa das quadras de tênis.

Minha amiga andava animada com a profusão de blocos carnavalescos, e, como a mãe dela estaria na cidade, disponível para cuidar da neta, achei prudente confirmar no domingo se ela ainda queria ir ao bailinho. No carnaval carioca, é normal se decidir por um bloco em cima da hora. Claro que vamos!, respondeu. Chegou com a menina no horário marcado, e no dia seguinte mandou e-mail comentando como tinha sido ótimo, que o clube era muito bom etc.

Nessas alturas, eu já estava achando tudo muito estranho. Tinha alguma coisa fora da ordem. Mas a gota d'água mesmo foi na semana passada.

Minha amiga ainda não conseguira, desde a volta ao Brasil, reencontrar uma colega que temos em comum. E lhe ocorreu oferecer um almoço em sua casa nova, quase sem panelas (isso eu saberia depois), para nós duas. Poderia ser na quinta ou na sexta-feira, ela propôs às duas por e-mail. A filha estaria na escola, de turno integral, ficaríamos à vontade e ela mostraria a moradia provisória. Seria ótimo.

Ao mesmo tempo em que retornei o e-mail dizendo preferir a sexta-feira, a outra convidada respondeu que só poderia na quinta. Pronto. Finalmente. Agora sim, as coisas começavam a entrar na normalidade. Ficaríamos alguns dias tentando acertar disponibilidades, horários, agendas, cada uma contando seus motivos, o quanto estamos todas tão ocupadas, e que o melhor talvez fosse um happy hour - para uma -, ou quem sabe marcar no fim de semana - diria a outra. Depois de uns vinte e-mails (se houvesse uma quarta amiga, este número dobraria, em um tipo de progressão matemática facilmente comprovável), uma data seria agendada sem convicção, até que uma indisposição ou questão familiar fizesse uma de nós três desmarcar. Ou simplesmente furar.

Foi quando meu celular tocou. "Marta, você não pode mesmo na quinta? E se a gente..." Bem, minha amiga teve o inusitado impulso de ligar para ambas e rapidamente acertar tudo. Na quinta-feira (sim, fui eu que dei um jeito), chegamos ao simpático apartamento quase sem panelas e comemos um delicioso almoço que nada tinha de improvisado. Eu estava tão sensibilizada que tinha vontade de chorar com cada detalhe. Ela não havia achado no supermercado os cogumelos certos e o único pirex havia quebrado, por isso fizera a quiche daquele jeito, e que bom que havíamos gostado (na verdade adorado). Sim, a trufa de chocolate branco era feita de modo um pouco diferente da de chocolate preto, mas aquela sobremesa precisava das duas, para contrastar com as framboesas e o bolo de laranja - a única coisa comprada pronta.

Rimos que era um absurdo ela não ter feito o bolo também, que estávamos indignadas com aquela "falta de consideração". E foi ótimo rir para não chorar, não chorar tardiamente por todos os "bolos" que já levei, compromissos desmarcados em cima da hora, atrasos sem justificativas, convites feitos pela metade ("vamos nos ver!"), pessoas que simplesmente "somem". Não chorar pelo pouco esforço para se promover encontros e gentilezas que se tornou regra.

Nada pessoal, bem sei. Tudo cultural, tento sempre me convencer, e lembro-me de um compromisso profissional que eu tive certa vez na Alemanha; na véspera todos em pânico à minha volta. Descobri que o problema era a entrevista marcada para 9h: além de jornalista, me explicaram, eu era brasileira. E ainda por cima... carioca! Não sou tão carioca assim, garanti, e todos puderam comprovar no dia seguinte.

Bem na semana de meu almoço, a Fifa havia publicado em seu site uma cartilha para turistas na Copa denominada "Brasil para principiantes" que causou o maior bafafá. Entre outros comportamentos atribuídos à nossa cultura peculiar estavam - descritos até com certo jeitinho - a falta de pontualidade e o descompromisso. Como todo brasileiro, ando irritada com a arrogância da Fifa, mas pensei cá com meus botões: é isso mesmo. É verdade. Quando a tal cartilha já havia sido retirada do site, achei curiosa a proposta do colunista do Globo Francisco Bosco: que aceitássemos o diagnóstico sobre nossos comportamentos, contudo notando "outros sentidos e valores desses mesmos fenômenos, que o etnocentrismo da Fifa não permite ver."

OK. Interessante. Vou tentar, pensei. O atraso, por exemplo, revelaria uma relação mais descontraída com o tempo. Bem, eu já vinha pensando nisso, tanto que nem me incomodo mais com atrasos alheios, acho melhor que toda aquela rigidez germânica. Não gosto nem consigo chegar atrasada, mas posso esperar sem problemas, ainda mais se o celular tem bateria e internet.

Quanto a prometer coisas e não cumpri-las, Bosco sugere que este comportamento teria a vantagem de "dar vazão a um desejo do momento". Sim, eu já percebi, diante de um almoço desmarcado uma hora antes, que o outro provavelmente estava dando vazão ao desejo do momento de fazer outra coisa, ou simplesmente de furar. Uma amiga minha, impontual mas do tipo que cumpre compromissos, me contou que teve um almoço de trabalho desmarcado 11 vezes. No décimo primeiro furo, o sujeito mandou a secretária lhe enviar flores. Quem pode ser tão "ocupado" assim?

Depois desta breve reflexão sobre o tal "desejo do momento", respirei fundo e retomei o texto, para tentar me convencer: "Prometer coisas e não cumpri-las é dar vazão a um desejo de momento, e preferir manifestá-lo a submetê-lo à prova de sua duração, como se a duração fosse a "norma" do desejo (há nisso a chave de toda uma economia pulsional diferente da dos europeus)." Reli duas vezes, cogitei sobre a nacionalidade de minha economia pulsional, mas só consegui concluir: depois desse almoço cheio de gentilezas, da próxima vez que alguém for dar vazão ao desejo do momento às minhas custas, juro que reajo. Com um xingamento bem carioca, que ainda nem entrou nessas cartilhas.

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 25/4/2014

 

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