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Sexta-feira, 9/5/2014 Arte que não parece arte Gian Danton Durante séculos acreditou-se que a arte se restringia à produção de imagens, em especial pinturas e esculturas. O artista era uma espécie de artesão de luxo, único capaz de produzir belas imagens que mimetizavam a natureza. Hoje, no entanto, a produção de imagens não é mais um monopólio dos artistas. Qualquer um, munido de uma câmera fotográfica digital ou de um simples celular pode produzir e manipular imagens. Consequência disso, a produção de imagens vem crescendo em proporções assustadoras a ponto de existirem redes sociais específicas para ela. Para sobreviver como meio de expressão, a arte se reposicionou radicalmente, a ponto de muito do que é realizado atualmente é arte que não parece arte. Marcel Duchamp já havia observado, em 1912, que a mecanização e a divisão do trabalho já haviam substituído o artesão na maior parte das funções sociais e econômicas, por que poupariam o pintor? A resposta de Duchamp a isso foi a criação dos ready mades: objetos industriais, comuns, mas isolados de seu contexto e identificados como arte a partir das circunstâncias. Assim, um urinol era apenas um urinol, mas ao ser colocado em um espaço artístico, um museu, uma galeria, tornava-se obra de arte. Sua frase "aqueles que olham são os que fazem o quadro" apresenta a chave da discussão trazida para a arte. O construtivismo russo apresentou uma forma própria de lidar com essa situação, uma nova linguagem artística fundada sobre o princípio da realidade, mas um realismo visto não como uma visão objetiva do mundo, mas como uma superação do mimetismo ilusionista. Ao abandonar a representação da realidade, o construtivismo investia diretamente sobre a realidade, levando às atividades do dia-a-dia uma dose de subjetividade. Exemplo disso é o conjunto de bule e xícara criados por Kazimir Malevitch em 1923 para a Fábrica do Estado de Petrogrado. O bule era um objeto que parecia uma intersecção e um desdobramento de cilindros e cubos. O outro objeto, uma mistura de nave e lua, que se dividia ao meio, formando duas xícaras. Era um exemplo da subjetividade da arte levada ao cotidiano. Tanto o urinol de Duchamp quanto o bule de Maletitch demonstravam que a ação, num determinado contexto, gerava sentidos muito além do objeto em si, um conceito que irá nortear boa parte da arte a partir da segunda metade do século XX. A frase de Duchamp sobre o olhar que faz o quadro ainda supõe um produtor e um observador, é uma noção de público, como no teatro ou no cinema. A inovação que surgiria posteriormente seria justamente uma ruptura com essa ideia. O artista norte-americano Allan Kaprow fazia uma distinção entre a arte que parecia arte e a arte que não parecia arte, mas se parecia com vida. A primeira está numa tradição cartesiana de separação, em que o corpo é separado do espírito, o indivíduo da coletividade, a cultura da natureza, a arte da vida e as artes entre si. Era uma arte que trabalhava com a informação classificadora, em que as coisas são separadas em categorias multuamente excludentes. Já a arte que não se parece com arte tem como princípio básico a mistura: misturar arte com arte e arte com a vida, o espectador com a obra. O lema é "reduzir distâncias". Exemplo disso foi a experiência feita por Kaprow a partir de um dos cartões impressos por Brecht entre 1959 e 1962. O cartão, chamado "Três eventos aquosos" trazia apenas três palavras: "gelo, água, vapor". Kaprow colocou um recipiente com água no fogo e observou quando a mesma começou a ferver, sentiu o calor e as nuvens de vapor que se formavam. Depois derramou o conteúdo num bule com folhas de chá. Quando ela resfriou, ele, sentindo o frio do gelo, colocou-o na infusão. Ele fez o chá, observando atentamente. No contexto de arte que não parece arte, estar atento às atividades cotidianas pode ser mais importante que a produção de objetos. Nesse sentido, a arte remete às filosofias orientais, em especial à técnica de atenção correta do budismo. Sua proposta era introduzir outras informações nesse circuito, de modo que o próprio público participasse ativamente do processo, numa percepção diferente e uma atuação crítica. O projeto Coca-Cola, parte do projeto Inserções em circuitos ideológicos, consistia em colocar adesivos com mensagens nas garrafas retornáveis da Coca-Cola. A mensagem só podia ser vista quando a garrafa estava cheia de líquido escuro, de modo que ela voltava para a fábrica "invisível", era cheia e retornava ao circuito. Pode não parecer, mas as obras de Kaprow e Cildo têm muito em comum. Primeiro porque quebram com o culto do objeto artístico. Em nenhuma delas há um objeto especial que possa ser colocado no museu (embora, ironicamente, algumas garrafas de Coca-Cola de Cildo tenham sido levadas ao museu, onde, fora do contexto, perderam seu significado). Segundo, ambas apresentam uma reflexão, um modo diferente de ver a vida e objetos cotidianos. Assim, na arte que não parece arte não há um objeto pronto a ser apreciado, mas antes um processo a ser vivenciado pelo artista e pelo público. Gian Danton |
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