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Quarta-feira, 14/5/2014
Gabo, os escritores e a política
Wellington Machado

Não poderia ter sido melhor a cobertura feita pela imprensa acerca morte de Gabriel García Marquez, o Gabo, a se considerar a quantidade e a qualidade dos conteúdos publicados. Nos jornais e revistas impressos, uma quantidade incomum (para os dias atuais) de páginas foi dedicada ao escritor, valendo-se de gráficos, tabelas, material infográfico etc. Igualmente ricas foram as matérias publicadas nos diversos sites de jornais do mundo inteiro. Entretanto, na maioria das abordagens, no mar de loas biográficas e literárias justificadamente atribuídas a Gabo, foi citado o seu envolvimento com Fidel Castro, como se essa amizade representasse um único "senão" em toda a história do autor de Cem Anos de Solidão. O paralelo comparativo entre a obra de Gabo e uma suposta "insanidade" do autor na sua aproximação com o líder cubano soou equânime, arranhando de forma injusta a monumental obra do escritor. Parece haver uma dificuldade em dissociar estética de posicionamento político nas análises feitas na mídia.

O histórico de envolvimento de escritores e intelectuais com a política, em sua maioria, demonstra-se desastroso. Caberia pensar até que ponto vale a pena os escritores se engajarem ideologicamente, se aliando a partidos, correntes ou personalidades, posto que comprovadamente tal postura afeta a avaliação das suas respectivas obras - quando elas não são distorcidas. É imperativa a ideia de que o escritor tem de ser intelectualmente engajado? Um exemplo patente aqui no Brasil foi o envolvimento de Graciliano Ramos com o Partido Comunista. Numa tentativa malfadada de se levantar contra o governo Vargas, em 1935, o escritor ficou detido por mais de um ano no Rio de Janeiro.

Os exemplos de escritores que tiveram suas biografias manchadas pelas suas inserções políticas pululam por todo lado. Recentemente, com a publicação autorizada dos cadernos pessoais de Heidegger, confirmou-se o seu envolvimento com o nazismo no período de 1933 a 1945 - bem como os escritores Louis-Ferdinand Céline e Gunter Grass, cada um à sua maneira. Impossível não lembrar de algumas concordâncias dos argentinos Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato com algumas medidas polêmicas do ditador Rafael Videla. Já Mario Vargas Llosa levou ao extremo a questão do engajamento político ao tentar se eleger presidente do Peru, em 1990. Ainda que a "mosca azul" tenha lhe seduzido, o escritor peruano se arrependeu amargamente da empreitada, retomando prontamente a carreira de escritor.

Mas o engajamento político não pode ser confundido, creio, com questionamento político. A história nos mostra a importância da atuação dos escritores (e artistas em geral) que lutaram contra a ditadura no Brasil - muitos deles sendo presos, inclusive. Recentemente, o escritor Luis Ruffato se destacou na Feira do Livro de Frankfurt ao fazer duras críticas ao Brasil. Ele destacou a imaturidade e despreparo do país ao lidar com questões como homofobia, violência e desigualdades sociais.

O escritor português José Saramago foi quem mais sofreu com essa contaminação político-ideológica nas análises das suas obras, pelo simples fato de ele ter-se declarado comunista. Não era incomum a imprensa conservadora fazer críticas aos livros do escritor, exaltando sua lente comunista em detrimento da sua qualidade estética. Por outro lado, a imprensa com viés esquerdista, frequentemente exaltava seus livros não pela sua qualidade intrínseca, mas justamente pelo fato de o escritor ser comunista. Essa divisão sempre foi detectável no trato da obra de Saramago no Brasil.

Não seria mais prudente um escritor trazer suas convicções e questionamentos para dentro de suas obras? O próprio Saramago fez isso com maestria em alguns de seus livros. A crítica à gana capitalista está subentendida no romance A caverna. A narrativa aborda a decadência financeira de Cipriano, um oleiro que vivia da venda de sua louça, produzida artesanalmente. A sua vida se desmorona quando é instalado na comunidade um grande centro de compras (shopping), onde passaram a ser vendidos vasos mais baratos que os do oleiro: a produção em massa aniquilou a artesanal. No livro Ensaio sobre a lucidez o foco é a insatisfação com a classe política. A população de uma cidade decide, de forma unânime, a votar em branco numa eleição, como um levante contra a falta de opção, a incompetência dos candidatos a ocuparem cargos públicos.

Parece haver uma exigência de que o escritor tenha, necessariamente, de ser um intelectual atuante, como se fosse um passaporte para a valorização de sua obra. Não é raro, nos acontecimentos mundiais mais marcantes, nas mais variadas instâncias, a imprensa procurar escritores para emitirem sua opinião (é certo que muitos adoram esse assédio). Não é raro encontrarmos respostas generalistas - quando não estapafúrdias. Haveria algo de errado em o artista ser essencialmente um esteta em tempo integral, com o compromisso exclusivo com a arte imaginativa?

Lembro bem da participação do escritor carioca Alberto Mussa na Bienal do Livro de Minas, há alguns poucos anos. Após um debate com outros escritores, foi aberto um espaço para perguntas da plateia. Um aluno de filosofia tomou a palavra e começou a elaborar uma pergunta permeada de digressões, amparada em citações filosóficas previamente anotadas, cheia de nuances ideológicas, como se a intenção fosse encostar o escritor na parede ou deixá-lo de saia justa. Aquele tipo de pergunta em que se pretende ser mais brilhante no questionamento do que na resposta. Mussa, de forma humilde, após ouvir pacientemente a elaboração cheia de tentáculos do aluno "desafiante", pegou o microfone e, de forma objetiva, disse: "não sei responder".

Wellington Machado
Belo Horizonte, 14/5/2014

 

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