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Sexta-feira, 1/2/2002
Costume Bárbaro
Alexandre Soares Silva

Quando você está namorando, sem planos de casar, todas as amigas da sua namorada começam a casar num ritmo quase histérico. Até as feias, burras e fedidas. Você vê a sua namorada de cara fechada, já sabe que outra amiga dela anunciou casamento - ou, pior, vai ter um filho - e que você vai ter que ouvir.

Depois que o seu namoro termina, todos esses casais começam a se dissolver, como você até sabia que aconteceria. Afinal, eles já cumpriram a função deles: te encher.

Outra coisa: esse costume bárbaro de chá de cozinha, chá de bebê, chá de Home Theater etc - isso tem que acabar. Deveria ser questão de honra um casal jovem só se casar se for capaz de se sustentar sozinho. Quer dizer: eles decidem se casar, encher o mundo com mais um fedelho, mais uma garota que vai adorar o 'NSync da época dela, ou um garoto que vai dirigir bêbado aos sábados, e você ainda tem que pagar por isso. E achar lindo.

Definição de chá de cozinha: a forma encontrada por alguns casais, empregados ambos e progredindo na vida, para que seu casamento seja pago por seus amigos desempregados, que não se casam justamente porque estão desempregados. Ver chá-de-bebê.

O Senhor dos Anéis
No Paraíso vou ter que ver de novo todos os filmes de que gostei - dessa vez sozinho na sala de cinema. Nos melhores momentos de qualquer filme, minha atenção é desviada (ou pelo menos dividida) para o pé de alguém esbarrando na cadeira, ou o comentário inane de um adolescente com sinusite (“Putz!” ou “Ah, tá bom, vai”). Quando estou olhando para Saruman, não quero ter a atenção dividida com um moleque da Vila Carrão que faz rachas aos sábados e sai com uma garota de voz infantil chamada Rochelle. Nesses momentos eles deviam sumir; durante pelo menos essas três horas eles deveriam nunca ter existido.

Me diverti, na saída (na saída é diferente, na saída pode, vá lá, embora eu preferisse ter uma saída especial para mim, onde eu não tivesse que ver ninguém nem ouvir nada) com uma velhinha descendo devagar os degraus, eu preso atrás dela. O neto a levava pelo braço. Tinha evidentemente a convencido a sair, se distrair um pouco - afinal é um dos poucos filmes sem sexo que a velhinha pode ver, etc. A velhinha não estava grata - reclamava: “Que filme idiota! Me arrastar até aqui pra isso! Filme sem pé nem cabeça! Três horas pra essa porcaria! Ficar aqui até a uma da manhã para um filme que não tem nem fim!”, etc. O neto envergonhado da velhinha estar falando alto demais.

Pode se desculpar muita coisa à velhice, e eu desculpo, e me diverti com a velhinha, mas acho que não há outra palavra para ela, a não ser “mediocridade”. Ela preferiria estar vendo novela, que é tudo que consegue entender. Fulano que quer montar uma loja, mas não tem dinheiro. Fulaninha que gosta de fulaninho, sendo que fulaninho só tem olhos para beltraninha, aquela quenga. Essas coisas.

Por quê, nas novelas, ninguém tem uma ambição intelectual que seja? Você nunca vê um personagem cujo objetivo é compreender completamente a obra de Kierkegaard. E nunca vai ver. Nem nenhuma ambição espiritual, nem artística, nem (por menos que eu goste dessa palavra) existencial. O que deixa essa velhinha perfeitamente tranquilizada.

Quanto ao filme - ele não precisa dos meus elogios. Digo só isto: que depois de vê-lo tentei ver outros filmes, tentei ler Raymond Carver, Dalton Trevisan, até mesmo Tchecov, mas tudo me pareceu horrivelmente desenxabido. A única coisa que consegui ler foi o Kalevala, o épico finlandês, transcrito por Elias Lönnrot em 1833. Pode-se não saber, por nunca tê-lo sentido de verdade, o quanto o épico é bom, o quanto ele é superior ao lírico - por natureza, o épico inclui o lírico, enquanto o contrário não acontece - mas só um idiota se esqueceria disso, depois de tê-lo sentido.

Teste
Se você não responde ao Senhor dos Anéis (livro ou filme), alguma coisa está morta dentro de você - e cheirando mal.

Advogados
Fui servir de testemunha esta semana no processo trabalhista de um amigo. Eu e outras duas testemunhas não fomos chamados para dentro da sala de audiência (chamada de “berçário”, porque se pode espiar para dentro através de uma parede de plástico transparente). Durante três horas ficamos sentados numa salinha, no décimo segundo andar de um edifício no centro, suando e ridicularizando o juiz. A ignóbil outra parte estava do lado de fora da salinha de espera, junto do elevador, fumando. Eles espiavam pela porta de vez em quando, muito embaraçados para entrar na mesma sala em que nós estávamos.

Eu não tinha nenhum livro comigo, e como a conversa (sobre palestinos e judeus e a língua hebraica) havia morrido, fiquei observando os advogados à minha volta. Um homem gordo de terno bege amassado, com uma expressão esperta e baixa de Barão Vladimir Harkonnen, lendo uns papéis com óculos de leitura na ponta do nariz. De vez em quando dava uma ordem em voz rouca aos dois sujeitos “humildes” que estava representando. Uma mulher jovem vestida de amarelo-orquídea, que em certo momento disse “as pasta”. Uma mulher amarga de rosto amassado. Um homem de terno azul cobalto, cabelo puxado pra trás com gel, dando uma impressão de pastor evangélico ansioso sendo apresentado ao pai da namorada. Outro gordo de terno bege amassado (advogados adoram ternos bege amassados), de rosto vermelho e usando uma bengala.

Uma sala cheia de advogados não é uma visão bonita. Eles se vestem mal. Carregam todos a mesma pastinha de couro mole. Dizem “outrossim”. E há também a atmosfera espiritual: cheirando a Lyons Club e canal de televendas, churrascaria e futebol society. Não é à toa que quase todos os grandes escritores do século dezenove (Balzac, Tolstoi, Dickens, Galdós) não só odiavam advogados, como abandonaram o curso, ou o estágio, logo no primeiro ano (isso foi notado pela primeira vez pelo crítico C.P.Snow, que também notou que esses escritores todos eram baixos, banguelas, e ruins de matemática - mas isso é outra história). Meu ponto é: se os gênios abandonam os cursos de direito logo no primeiro ano, segue-se que as pessoas que terminam o curso são... Ah, os futuros senadores e presidentes de time de futebol...Gente assim, grandes notáveis...

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 1/2/2002

 

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