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Quinta-feira, 5/6/2014
Humor x Desamparo
Carla Ceres

Há uns dez anos, meu irmão foi covardemente espancado na rua, por causa de uma discussão de trânsito. Do hospital, amigos pediram a minha mãe que esperasse por ele em casa, porque, "mesmo que a senhora venha até aqui, não vai conseguir reconhecê-lo". Fiquei sabendo da história no dia seguinte e me preparei para enfrentar o susto que seria olhar para aquele rosto que recebera tantos chutes, o rosto irreconhecível do único irmão que a vida me deu para brincar, brigar e proteger. Imaginei como lidar com o sofrimento, a sensação de injustiça e a preocupação dos amigos e familiares.

Apesar de saber que meu irmão talvez não passasse daquela noite (um coágulo qualquer poderia se soltar e matá-lo), apesar de sentir a mesma indignação impotente que todos estavam experimentando, optei pelo bom humor. Quando cheguei à casa de minha mãe, botei um sorriso no rosto, fui entrando, afastando as pessoas e dizendo: "Dá licença, mãe, que eu sou parente da vítima! Dá licença, pessoal, que eu sou parente da vítima!" Só parei quando "a vítima", com a cara toda arrebentada, apareceu avisando: "Vítima é o seu nariz. Não me faz rir que doem os pontos" e riu. Riu muito nas duas horas que fiquei lá contando piadas e histórias cômicas. Todos entraram no clima e se divertiram relembrando incidentes engraçados. Foi quase uma festa.

A história do parente da vítima (cujo autor, eu desconheço) faz sucesso entre guardas rodoviários. É mais ou menos assim: Um motorista encontra uma aglomeração de veículos e pessoas ao redor de um acidente na estrada. Curioso, ele para o carro e tenta se aproximar para ver os detalhes, mas ninguém deixa. Nessa hora, surge a ideia brilhante. Ele vai afastando as pessoas e dizendo "Dá licença! Eu sou parente da vítima. Dá licença! Eu sou parente da vítima." As pessoas vão abrindo caminho até ele chegar a um corpo coberto por uma lona. Ainda insatisfeito, o curioso pede ao policial que descubra o corpo "porque eu sou parente da vítima". Prestativo, o policial levanta a lona e o motorista, finalmente, se depara com a vítima: um cavalo atropelado.

A piada do parente da vítima é uma das favoritas da minha família. Contá-la foi uma forma prática de indicar a meu irmão que deveríamos lidar com aquele espancamento do mesmo modo como sempre lidamos com as violências sofridas pela vida a fora, com bom humor. Não era hora de nos deprimirmos. Precisávamos de força para nos recuperar do baque e botar as engrenagens da justiça em funcionamento. Foi o que fizemos com sucesso, enquanto ele melhorava.

De acordo com o dr. Abrão Slavutzky, autor do livro Humor é coisa séria, "o humor diminui a angústia ao permitir a descontração que suaviza o viver diante da difícil realidade. Portanto, ter sentido de humor é dispor de um poder no difícil jogo da existência". Infelizmente, segundo pesquisas, mais da metade das pessoas não tem bom humor, ou seja, recebe os golpes da vida sem ter "a capacidade simbólica de gerar prazer onde, geralmente, ocorreria a dor".

Livros sérios sobre humor costumam entediar quem procura alguma possibilidade de sorriso. Para a sorte do leitor comum que se interessa por humor e psicanálise, Humor é coisa séria contraria essa tendência à aridez teórica. Os sorrisos estão garantidos, mesmo que, às vezes, meio tristes como acontece no capítulo sobre o humor no Holocausto, em que encontramos várias piadas e brincadeiras feitas pelos judeus para sobreviver à loucura do nazismo. O Dr. Slavutzky é psiquiatra e psicanalista com quarenta anos de experiência, mas também é fã de Charles Chaplin, Cervantes, Woody Allen, Millôr Fernandes, Luís Fernando Veríssimo, Henfil e muitos outros mestres do humor. Sua cultura impressionante caminha de braço dado com a leveza. Para começar, a capa do livro apresenta uma charge com o paciente Sigmund Freud deitado no divã do psicanalista Charles Chaplin.

Intercalando considerações sérias com exemplos de bom humor, o autor reúne capítulos independentes que podem ser lidos na ordem que se preferir. Apenas o "Epílogo quase sério: a metapsicologia do humor" pode dar trabalho a leitores pouco habituados à terminologia psicanalítica. As demais partes - "Uma arte de existir"; "A piada, o sexo e a morte"; "O humor é rebelde" e "Entre o peso e a leveza" - fluem tão bem que parecem escritas sem esforço. Segundo o Dr. Slavutzky, a própria psicanálise tem se beneficiado de uma prática mais leve e bem humorada. Os psicanalistas modernos não adotam mais uma postura distante e superior. Não ficam quietos fazendo apenas "hummm" como vacas atoladas.

Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/

Carla Ceres
Piracicaba, 5/6/2014

 

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