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Segunda-feira, 21/7/2014
O africano e o taubateano
Ricardo de Mattos

"Da reputação e da memória de meu pai, a modéstia e a hombridade" (Marcus Aurelius).

O feriado de nove de julho sempre pega-nos de surpresa. Ou muito enganamo-nos, ou trata-se de dia de paralisação ora facultativa, ora geral. Acabamos de sair de uma instituição pública de ensino e não recordamos de pausa letiva neste dia. Temos isso bem em mente, pois os alunos evaporavam à mera ameaça de feriado, e não nos lembramos de algo relacionado a este específico dia no correr do curso. A marcha lenta do reinício da vida profissional, o não fornecimento pela prefeitura das panelas de sopa que costumamos retirar todas as quartas-feiras para servi-las em nosso centro espírita, e a decisão de nossa Lily - apesar do frio - de lavar todo o conteúdo do seu guarda-roupa: todas estas variáveis resultaram num inesperado dia de retiro doméstico.

À leitura, portanto. Passamos a manhã vasculhando publicações virtuais especializadas. Uma revista de psicopatologia fornece-nos uma inesperada variedade de textos clássicos, textos que correspondem ao nosso gosto pela cronologia, pelo entendimento de como o pensamento transitou pelo tempo. Esquirol, Kraepelin, Charcot, Janet... Ao mesmo tempo, em duas outras publicações encontramos artigos que correspondem às necessidades atuais, rotineiras, práticas. À hora da nutrição corporal, já estávamos espiritualmente saciados.

Depois de assistirmos a mais recente tentativa de reencarnação televisiva de Sherlock Holmes na série Elementary, fomos atrás de mais leitura. Sócrates afirmou que o melhor tempero é a fome. Alguns contratempos tiraram-nos, nas últimas semanas, a concentração e o tempo necessários à leitura descompromissada, aquela feita sem objetivo prático imediato. O criado-mudo está cheio, mas, conferindo os volumes, consentimo-nos o capricho de perceber que não era bem o que queríamos. Diante do armário de livros, o olhar vagou pelos títulos até demorar-se sobre O africano, de Gustave Le Clézio. "É este".

***

Nascido na França, na cidade de Nice, aos oito anos Le Clézio foi com a mãe e o irmão ao encontro do pai na África. De uma Europa em guerra, passou a morar na Nigéria, onde a rigorosa disciplina do pai recém-conhecido - o africano do título -, não chegou a suprir-lhe um exercício até então desconhecido de liberdade, do contato com a Natureza e com as pessoas. Vivência que lhe permitiu correr descalço pelas planícies e acompanhar as crianças locais em suas brincadeiras. Começamos a leitura em torno das 14h e às 19h30 já havíamos encerrado, com direito a intervalo para namoro pelo telefone, cuidado com as cachorras e nosso próprio banho. Texto agradável, fluente, semeador de imagens. Pessoalmente, estimulou-nos reflexões, paralelos e revisão da trajetória. Perdoe-nos leitor, mas ninguém fecha ileso um bom livro.

Curioso perceber que a escrita desacelera com o início do autodistanciamento, quando o "eu" e suas relações objetivam-se. Mesmo em Montaigne, um de nossos principais modelos, percebemos os volteios antes do encontro consigo. Estratégia política - Se o chefe de uma praça sitiada deve sair para conversar -, canibais, nomes, cavalos e as numerosas citações que lhe são características. Olhar direto para Medusa petrifica, então recorre-se a alguns subterfúgios simbolizados pelo espelho.

É que o livro envolveu-nos durante mais um período de conflito familiar. Mais uma briga feia e mais alguns dias sem um olhar para o outro. Cada um postado orgulhosamente em seu torreão, tendo a mãe como mediadora da vez. Mais um tempo e a convivência regular restabelece-se e os papéis invertem-se. Nunca passa disto, contudo: convivência regular.

Le Clézio introduz o leitor ao texto:

"Todo ser humano é um resultado e pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças, a forma de suas mãos e de seus dedos do pé, a cor dos olhos e dos cabelos, seu modo de falar, suas ideias, provavelmente a idade de sua morte, Tudo isso passou para nós".

Somos contrários aos determinismos, mas não somos radicais a ponto de negarmos o óbvio. A altura é a mesma, embora um tenha esmerado-se na manutenção de porte físico próximo ao esbelto e o outro pague o preço de apreciar a boa mesa. O processo de calvície de um iniciou-se próximo aos trinta anos, enquanto o outro conserva a cobertura capilar quase intacta (bravo!). Ponha-se um boné e a semelhança dos rostos é impressionante, guardada a distância etária. O desenho das mãos e dos pés, também, assim como o hábito de levantar as sobrancelhas, franzir a testa e contrair um dos lados da boca diante de uma contrariedade. O hábito de "falar para dentro" caracteriza os dois. Ambos ciscam no prato, hábito herdado da mãe e avó. Quanto mais fala, mais revira e assenta a comida, revira e assenta. Um fez-se esportista e o outro não. Um coleciona medalhas obtidas ao longo da vida em diversas modalidades de futebol não oficial. O outro olha comovido para os livros reunidos e lidos. Um é hiperativo, o outro é lento. Um dorme, mas pula da cama ao menor ruído e sai gritando pela casa, descrente que as pessoas realmente dormem à noite. O outro desdobra.

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Política. Não acreditamos em política no mundo atual. Há jogos de interesses e de vaidade, politicagem, troca de favores e, quando muito, administração. Suspeitamos que administrar tenha se reduzido a manter organizado, o que não exige fundamentação em nobres princípios. Campos de concentração foram administrados. Ele intrometeu-se com a politicalha local. Sempre metido em campanhas municipais, convidado por este ou aquele candidato devido ao grande número de pessoas que conhece e aos recantos que descobriu por causa do trabalho. Contudo, não limitava sua atitude a si. Invasivo, fazia promessas e adulações em nome dos familiares. Acompanhamo-lo, ainda criança, a determinado comício. Mandou-nos vestir a camiseta do candidato antes de descermos do carro. "Não quero, não gosto desta camiseta". "Não enche e veste logo, vai", respondeu com rispidez. Concessão momentânea e definição futura. Percebemos que sua atitude manteve-se ao correr dos anos, apesar de nada falar-nos. Tão somente para evitar comprometimentos irresponsáveis promovidos por ele, filiamo-nos a um partido político, o Democrata. Legítimo asilo político. Na penúltima campanha para a prefeitura municipal, aliou-se ao candidato que depois foi o vencedor e assumiu um posto executivo. Por mais que goste dos bastidores, não aguentou o tranco e pediu para sair. Foi um ato de honestidade e de prudência diante das mazelas da mais corrupta administração municipal de São Francisco das Chagas de Taubaté. Todavia, não aprendeu a lição: sempre conta as ocorrências dos clubes que frequenta.

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Le Clézio reconhece o amor com o qual seu pai iniciou sua carreira médica, primeiro na Guiana Inglesa e depois na África. Percebeu o desapontamento que o assaltou quando descobriu que, apesar de seu entusiasmo e dedicação, para uma parcela dos nativos o médico branco era apenas mais um agente da colonização. O autor, por outro lado, formou-se em Letras e fez-se escritor. Como leitor, também reconhecemos o entusiasmo paterno com seu ofício e também identificamo-nos com a descontinuidade familiar em mais este aspecto.

O entusiasmo foi notado quando acompanhávamos, em criança, parte da jornada diária pela zona rural de Taubaté e cidades vizinhas. Formado em Agronomia, o pai trabalhou no setor de crédito rural do antigo Banespa, o que justifica a abrangência. Fosse ou não sua intenção inteirar-nos das rotinas de trabalho para despertar-nos alguma vocação, o efeito foi colateral. Aprendemos a apreciar a vida no campo e a relação com a Natureza. Desenvolvemos o amor pelas plantas e pelos animais. Tivemos o contato com a gente simples - muitas vezes matreira - da roça, e os primeiros encontros com a cultura popular. Todos os sentidos retiveram informações consoante suas competências. O canto variado das aves; o gosto do café, dos doces e das frutas; a aspereza do pelo das vacas; as paisagens; o cheiro da lenha queimada e da poeira das estradas. Contudo, toda esta assimilação foi existencial. Não a relacionamos um acompanhamento do ganha-pão: torna-te agrônomo e desfruta disto tudo. Da mesma forma que visitamos a mãe no laboratório de anatomia junto ao qual ela lecionou. Tivemos medo e depois curiosidade pelos cadáveres em estudo, observamos as partes do corpo humano à disposição dos alunos, consultamos atlas e manuais. Nem por isso fizemos nossa escolha na área biomédica.

Em relação ao pai, portanto, o foco da questão trabalhista foi desviado para os complementos. Compartilhamos o entusiasmo, mas a descontinuidade profissional foi dramática. Começamos pelo Direito e pela advocacia. Encaminhamento dado de supetão, confessemo-lo. À pergunta direta e inesperada dele respondemos: "Direito". A surpresa sempre fez parte de seu modus operandi. Foi a primeira resposta que nos ocorreu, mas de alguma forma sabíamos que agradaria ou seria aceita com menor conflito. Houve uma tentativa de mudança da rota. Porém, quando anunciada a intenção de prestar vestibular para Filosofia, acabamos ouvindo: "quem foi que falou que você tem que prestar para Filosofia"? Negação de livre-arbítrio, dúvida quanto à capacidade de escolha, surdez intergeracional. Diálogo encerrado antes de iniciado e manutenção da primeira "escolha" laboral. Durante mais de uma década cumprimos nosso dever perante os clientes. Até questionarmo-nos, em torno dos trinta anos, si era aquilo que queríamos fazer até o encerramento da encarnação. Hoje, com a nova profissão, realizamos uma vocação. Diante de cada cliente visualizamos nosso próprio sentido existencial. Não pense o leitor que não houve - ou que não há - uma conta a ser paga.

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Leitura. A introdução definitiva no reino da leitura foi realizada pelo avô materno. Durante anos, o pai implicou-se com as compras de livros, com o dinheiro gasto com livros. "Você lê tudo isto mesmo?". "Comprou mais livro?". Aposentou-se e foi contaminado. Vira e mexe, aparece com o jornal ou a revista na mão pedindo que anotemos os dados e encomendemos o livro. Aprendeu a frequentar livrarias e a não tratar com grosseria os vendedores caso uma encomenda atrase. Lemos algo do que ele lê, mas ele nada lê sobre o que lemos. Demora-se na temática escolhida: turbulência no Oriente Médio, atentado de 11/09, ditadura militar no Brasil e autores locais - seja qual for o assunto. Aceita um ou outro romance, mas não demonstrou interesse ao colocamos a sua disposição oExpurgo, de Sofi Oksanen. Este ano conheceu Auschwitz e tudo indica uma série de livros sobre a segunda guerra mundial. Já adquiriu um exemplar d'As mulheres do nazismo. Quando presenteamos com livros pelo dia dos pais, aniversário ou Natal, escolhemos um título que costuma acertar no alvo.

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O futebol é sua religião, seu credo, sua espiritualidade. Jogou muito, pagando com o próprio corpo o preço da devoção. Mais de uma vez tornou à casa com o rosto horrivelmente desfigurado pela colisão com um poste da quadra ou pelo chute de outro jogador. Certa feita, parecia ter uma bola de tênis sob a pálpebra de seu olho esquerdo. A estranha marcha que o caracteriza atualmente é devida às incontáveis contusões, batidas, trombadas e mais acidentes previsíveis. Pelo que conhecemos, nada ficou sem troco. Assiste avidamente a qualquer partida que passe pela televisão, mesmo que entre times de Dubai e Butão. E é justamente o futebol o que mais nos distancia e no que reconhecemos seu principal desapontamento em relação a nós. Os cinco dedos da mão excedem o número de jogos assistimos integralmente na vida, incluídos os jogos de Copa. Um não soube transmitir ao outro seu gosto, sendo que justamente seu fanatismo cauterizou qualquer ponta de interesse que pudesse nascer em nós. Afirmamo-nos "palmeirense" apenas por sociabilidade: logo nossa ignorância é flagrada. No prédio onde estabelecemos nosso escritório, defendíamos o time apenas para implicar com o porteiro. Necessário reconhecer um elo, uma semelhança. Da mesma forma que ele levava a defesa de seus times à última consequência, ano passado também fomos levados aos batentes do Judiciário por termo defendido enfaticamente o que julgávamos correto. Não os ultrapassamos devido à intervenção de um amigo junto a quem se julgou ofendida. Cristo foi crucificado, Kardec teve sérios problemas comerciais, Chico Xavier foi processado pela família de Humberto de Campos. Não seremos nós que esperaremos facilidades.

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Nossa indiferença para com o futebol - acredite-se ou não, pouco importa - não é forçada. Si desaponta-o, sua indiferença com os assuntos religiosos preocupa-nos. Aqui notamos a divergência de personalidade. De nossa parte, nunca nos intrometemos com sua preferência. Quer jogar, assistir jogo, escutar rádio e ler o caderno de esportes do título ao último ponto final? Fique a vontade e faça o quanto quiser e puder. De sua parte, a indiferença com aquilo que buscávamos alterna-se com o deboche. Quando voltávamos da missa, durante a agonia de nosso catolicismo, ele perguntava: "tomou bênção do padre hoje?". Quando nos decidimos pelo Espiritismo e nossa frequência ao centro espírita chegou-lhe ao conhecimento - mais uma vez por terceiros, pois nesta cidade sempre há quem se antecipe - sua única pergunta foi: "vai virar macumbeiro agora?".

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Perceberá ele que foi justamente nossa preocupação com as questões do espírito humano que nos permitiram suportar uma convivência difícil e a cada passo conflitante? Não redigimos um libelo acusatório, nem é de nossa índole acusar quem não se defenderá - ele nem sabe o que é Digestivo Cultural. Que as reflexões provocadas pelo Espiritismo e pela Psicologia começam no cotidiano doméstico? Que a partir desta convivência aprendemos a rejeitar o papel de vítima - algo que nem nosso orgulho admitiria, sendo a imagem desta coluna uma opção tragicômica - e a partir dele claudicamos nos exercícios de compreensão e de aceitação? Compreensão e aceitação dele e nossa? Que "setenta vezes sete" é um dos mais difíceis cálculos que lidamos para aprender? Entenderá ele que o grito e a palavra agressiva visam romper-lha couraça e permitir um futuro diálogo? Quando terá, enfim, o entendimento de que nossa jornada espiritual - minha jornada espiritual - depende de alguma tranquilidade em relação ao seu próprio estado de espírito?

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Lé Clézio afirma que "não se recupera o tempo, nem sequer em sonhos". Pois contestamo-lo frontalmente e asseguramos que, principalmente nos sonhos, podemos recuperar o tempo. Ser o que não fomos e fazer o que não fizemos nem fazemos. Pensa que basta golpear o leitor e depois sair ganhando prêmio Nobel? O africano é posterior ao prêmio, mas mesmo assim: recupera-se e pronto.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 21/7/2014

 

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