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Quarta-feira, 30/7/2014
O Enriquecer é Glorioso!
Marilia Mota Silva

Passando pela Dutra, na altura de Taubaté, o taxista fez um gesto largo na direção das terras à margem da rodovia e disse: "Os chineses compraram tudo isso aí. Diz que vão fazer uma cidade inteira".

Não sei se a informação tem fundamento, mas é evidente que a presença chinesa se espraia pelo mundo com uma fluidez irresistível.

Eles são um bilhão e 370 milhões, mesmo depois de décadas de controle da natalidade, que permitia apenas um filho por casal. Só esse quebradinho, 370 milhões, dá um Brasil e meio, quase dois. É um quinto da população do mundo que, para o bem e para o mal, abraça o capitalismo e o consumo, com a sofreguidão de quem passou décadas sob um regime de frugalidade imposta.

A China hoje tem interesses no mundo inteiro: Detém valores astronômicos em títulos do tesouro americano, o que faz deles mais parceiros que credores. É de seu interesse que os títulos não se depreciem. Investe na África, constrói estradas, pontes, hospitais, obras de infraestrutura. Tem estreitas ligações com a Rússia. Ocupam o Tibet, disputam com o Japão a soberania sobre pequenas ilhas.

Não por acaso, nos Estados Unidos, muitas escolas públicas oferecem aulas de mandarim, desde o jardim-de-infância. As crianças se familiarizam com ideogramas, festejam o ano novo em fevereiro, dançam com sombrinhas e quimonos, constroem dragões e lanternas de papel. Mais do que o idioma, eles aprendem sobre a cultura, valores e tradições chinesas.

Foi-se o tempo da China isolada; foi-se o tempo em que os imigrantes chineses se agrupavam em chinatowns nas grandes cidades do mundo e resumiam sua presença a restaurantes e lavanderias.

Quem quiser ter uma ideia bem fundamentada da trajetória chinesa, passado, presente e desafios do futuro, a leitura de Os Chineses (Editora Contexto, 2009), da jornalista Cláudia Trevisan, atende com louvor. Em 320 páginas a autora nos apresenta um painel amplo e detalhado da história do povo chinês, seus valores e crenças, a influência milenar de Confúcio em sua concepção do mundo; descreve suas dinastias, a burocracia dos mandarins, fala do tumultuado século XX, de Mao Tsé-Tung e da Revolução Cultural, até os dias de hoje, em que a China pratica essa combinação inusitada de governo comunista com economia de mercado; de capitalismo sem democracia.

É jornalismo, história, reflexão, em um texto ágil, vivo e colorido, que se lê direto, como um bom romance. Copio três parágrafos, como exemplos:

"Mas talvez o mais extraordinário seja o fato de que os chineses não se parecem em nada com a imagem que nós temos de uma suposta placidez, silêncio e contenção orientais. Eles são tão ou mais ruidosos que os brasileiros, manifestam sua curiosidade sem restrições, adoram dançar e cantar, são extremamente gregários, tem paixão pelo jogo e devoção pela boa comida. Até os funerais são barulhentos, com música e fotos de artifício para espantar os maus espíritos. A vida no país não ocorre entre quatro paredes, mas ao ar livre. Praças, calçadas, os hutons estão sempre cheios de pessoas que se reúnem para conversar, cantar, jogar, dançar, fazer ginástica, praticar tai-chi-chuan, caminhar e manter vivas algumas das antigas tradições do país como as danças do leque e da espada."

"O hábito de comer com palitos de madeira os kwazi é outro que gera um pequeno desastre ecológico. Os 1,3 bilhão de chineses utiliza a cada ano 45 bilhões de pares de kwazi descartáveis. Para produzi-los, derrubam-se 25 milhões de árvores - quantidade equivalente ao total plantado pela ONG norte-americana American Forest desde 1990 nos Estados Unidos e no restante do mundo".

"Os chineses que hoje consideram o enriquecer glorioso corriam o risco de morrer ou serem enviados a campos de trabalho forçado se mostrassem qualquer gesto de sofisticação pequeno-burguesa durante a revolução Cultural"... "Hoje, substituíram a ideologia comunista pela consumista e os novos emergentes trocaram a vida de privações pela exibição irrestrita da riqueza."

Em 1978, onze anos antes da queda do Muro de Berlim, a China abriu-se para o mundo, dando início a uma fase de crescimento formidável. Hoje há dezenas de bilionários na China, com forte presença no mercado de luxo internacional, de jatos particulares às grandes marcas como Cartier, Rolex, Ferrari ou Louis Vuitton. E seu número aumenta a cada ano. "O enriquecer é glorioso, mas é preciso deixar que algumas pessoas enriqueçam antes das outras", slogan criado por Deng Xiaoping, tornou-se o mantra dessa transformação chinesa.

Não se pode viver todas as vidas; temos que nos valer do que experiência dos outros nos ensina: Depois de décadas de empobrecimento e repressão violenta de todas as liberdades, a China se viu na contingência de abandonar seus ideais de igualdade e materialismo impostos pelo Estado. O povo retornou com gana a suas tradições e crenças religiosas. O amor ao jogo, ao luxo, a competição, as superstições, todos os seus vícios e virtudes ressurgiram vivos, inexpugnáveis a décadas de "Revolução Cultural".

Com a adesão chinesa, o capitalismo se globalizou. E suas falhas e limites tornaram-se evidentes. Em termos globais o que vemos nos assombra: concentração extrema da riqueza, desperdício, indiferença, guerras, pobreza, exploração predatória de pessoas e recursos do planeta. "Quando a maré sobe, levanta todos os barcos", dizia Kennedy. "Primeiro é preciso deixar o bolo crescer pra depois distribuí-lo", dizia um czar da economia brasileira, em tempos de "milagre". Os fatos não confirmam essas crenças.

E isso nos remete a outro livro, O Capital no Século 21, do economista francês Thomas Piketty. O autor e sua equipe de economistas analisam o capitalismo, com objetividade, ignorando a bitola mental direita/esquerda.

"Os mercados não tem mecanismos de auto-correção", diz o economista, "sem controle, um pequeno número de capitalistas vai ser dono de praticamente tudo, com consequências sociais potencialmente assustadoras". Isso é evidente, mas parece que o óbvio também precisa ser declarado.

"Com a globalizaçao o capital está fora do controle de qualquer país, inclusive dos Estados Unidos. Se um país impuser restrições ao capital, ele se move rapidamente para outros paradeiros".

O caminho seria um capitalismo sob rédeas, diz Piketty. Deixado por conta própria, sua lógica interna, ao invés da igualdade, promoveria o inverso, ameaçando inclusive a democracia.

Esse controle só funcionará ser for feito em nível mundial. Todas as nações teriam que se comprometer; não poderia haver paraíso fiscal, contas secretas, esses mecanismos que tanto interessam a uns poucos que acumulam fortunas e patrimônios gigantescos.

Uma utopia, e também uma direção. Com os chineses no barco, o capitalismo em expansão, com todos os males do consumismo supérfluo e da produção predadora, que ignora o custo ambiental e humano, estudos e propostas como os de Piketty se tornam mais relevantes.

Marilia Mota Silva
Washington, 30/7/2014

 

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