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Sexta-feira, 1/8/2014
E se Amélia fosse feminista?
Ana Elisa Ribeiro

A Amélia, bróder, essa é que levou um ferro danado. Quem é que tem coragem de nomear uma filha assim, nos dias de hoje? Mas aí é que está. De onde foi que tiraram que Amélia é tudo o que achamos que ela é? É aquela história: ouvi o galo cantar, mas não sei onde. Acho que quase todo mundo padece desse mal do galo cantor. Mas fica a dica, então, de rever a letra. O Google pode ajudar, mas eu dou uma forcinha, pra não haver perda de tempo.

Pra começar, a música, da autoria do falecido Mário Lago, chama-se "Ai, que saudades da Amélia", coisa que muita gente não sabe. Curtinha, sem muita explicação, lá vai o eu lírico (vamos chamar assim, pra ficar nas aulas de literatura) comparar duas mulheres: a atual e a ex. Pronto, está estabelecido o conflito. Quem nunca? Rezam a etiqueta e o bom senso que isso não se faz, mas ó. Todo mundo, um dia, cai na besteira de comparar. Pois bem, firmado isso, agora é hora de notar em quê as duas moças são tão discrepantes. Parece que a consumista e fútil Atual não tem lá a mesma paciência que a Ex, tão resignada e positiva. Mas vamos à ilustração: "Nunca vi fazer tanta exigência/Nem fazer o que você me faz/Você não sabe o que é consciência/Nem vê que eu sou um pobre rapaz/Você só pensa em luxo e riqueza/Tudo o que você vê, você quer/Ai, meu Deus, que saudade da Amélia/Aquilo sim é que era mulher". É, perdeu, playboy. Mas cá está o estereótipo da mulher que, no próximo passo, vai exigir o cartão de crédito. E a Amélia é que levou a pior, minha gente. Ficou com a fama. Quem mandou não nomear a Atual?

Mais embaixo, o restante da letra dá conta da Amélia de novo: "Às vezes passava fome ao meu lado/E achava bonito não ter o que comer/Quando me via contrariado/Dizia: 'Meu filho, o que se há de fazer!'/Amélia não tinha a menor vaidade/Amélia é que era mulher de verdade". E qual é a implicância? É com a falta de vaidade da Amélia? O cara já disse que é pobre. E parece que não é no sentido figurado, minha gente. É pobre mesmo, pois reclama do consumismo da Atual, que nem sequer mereceu ter nome. Já a ex, ah, essa ficou bem na fita. Pois quem nunca, de novo? Vez em quando, um ex é alçado a santo ou a bom partido depois que a gente passa por coisa muito pior do que ele (se aplica a mulheres). Tem sempre jeito de piorar, né não?

Bom, mas por que eu trouxe a Amélia aqui hoje? Porque acho que ela é uma injustiçada. Amélia não obedecia cegamente ao seu homem, nem era necessariamente submissa a ele, nem mesmo se sabe se trabalhava fora ou não. Aliás, não se sabe nada sobre a Amélia. O que se sabe é que ela era bem mais legal do que a Atual do moço aí da letra, que levou foi um ferro danado quando trocou uma pela outra (sabe-se lá se foi isso?).

E que outras razões me trazem aqui para defender a Amélia? E esse cara da letra, leitor? É o cara? Bom, talvez tenha atinado para a coisa e voltado para a Amélia, que poderia nem estar mais disponível, né? Torço para que não. Mas ó: é que tenho ouvido tanto falar em uma tal "nova mulher", em contraponto a uma outra, mais "tradicional", metonimicamente chamada de Amélia, que resolvi desconfiar. De vez em quando, é bom.

"Nova mulher"? O que ela é? Parece que bem-sucedida, independente, autônoma, cheia de planos e de preocupações que antes só um homem poderia ter. A "Amélia" do senso comum (que não leu direito a letra da canção) é submissa, dependente, limitada. Pra fazer par (ou não) com essa "nova" e essa "velha" mulheres, haveria de existir um "novo homem", isto é, um cara capaz de conviver - e bem - com uma moça dinâmica, sabida, inteligente, interessante, autônoma, etc. etc. etc. Só que dado que o número desses moços ainda não é expressivo, já que eles não têm com quem aprender (nem mesmo com as próprias mães) e que não existem workshops intensivões no mercado, fica aí uma turma de "nova mulher" solteira, alegando que os homens ainda querem "Amélias"; e, em tese, uma turma de mulheres ainda querendo ser velhas e fazer parzinho com homens tipo "século passado".

O que há de relevante a dizer, talvez, é que essas questões não são lineares e cronológicas. Se eu fosse contar os casos da minha avó que trabalhava fora (e foi casada com um cara massa por 64 anos, até ele morrer) ou fosse lembrar alguns outros casos, teríamos aí uma série de eventos deslocados no tempo, inclusive contemporâneos da Amélia da letra. O lance é que existem "novos" e "velhos" em todas as épocas, e os casos (por vezes, "causos") das pessoas são conversa de boteco, e não sociologia.

Ai, ai... Amélia levou a fama e seu Ibope até baixou nos cartórios de registro civil. Que coisa. Outro dia, li um artigo de alguém, na web, dizendo que os homens mudaram e são capazes de conviver com a tal da "nova mulher", antítese da Amélia. A autora (lógico) do texto dava sua própria vida como exemplo, coisa que nós, cronistas, fazemos, às vezes, pra dar um toque de pirlimpimpim ao material. O que tem isso de mau? Nada. Não fosse a autora dar uma zoada básica nas pessoas que não vivem como ela. É causo; não é sociologia.

Tem homem que curte a ex e tem quem curta a Atual. Hoje em dia, casamento que dura uma década já devia ganhar o certificado das bodas de ouro, pra adiantar o lance. Pô, é claro que tem dificuldade de parte a parte. A mulher querendo ser independente, mas vendendo tudo, ainda, em troca de um chamego barato; o cara querendo bancar o alfa-provedor, sem saber que ter uma sócia é muito mais interessante. O que estraga tudo é o quê? O amor? Bestagem? Só sei que a gente adora uma categoria onde encaixar todo mundo, de modo que nem a gente sobre. Não vou defender que a Amélia fosse feminista, mas vai que fosse pró, moça esforçada e, ainda por cima, rebocasse o pobre moço pra ver se ele se aprumava? Ah, disso eu entendo bem. Muita mulher-locomotiva por aí, querendo ver a coisa funcionar, nem que seja na base do empurrãozinho. Mulher tem um coração tão bonito, em geral, que não se importa nem um pouco de ver o amoreco ir bem no trabalho, na vida, nas empreitadas. Pena é quando ele, sem o menor reconhecimento da parceria, a troca pela secretária. Fazer o quê? Já os moços precisam aprender a curtir, de verdade, quando a coisa vai bem pra Amélia, né não? Invejinha tem cheiro forte. Não é só dar aqueles "parabéns" amarelos. É aparentar firmeza, aquela do amor de verdade, do orgulho, do respeito e da admiração. Não tá fácil pra ninguém. Difícil é dar certo com quem voa longe. De repente, Amélia voou, foi trocada pela consumista vaidosa e baubau. Mas é que há tanta gente no mundo. Muito mais tipos do que esses dois aí. O eu lírico da canção é que precisava rodar mais. Amélia, na balada, ia fazer o maior sucesso. Eu queria uma amiga como ela.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 1/8/2014

 

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