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Quinta-feira, 31/7/2014
Cidade surreal
Elisa Andrade Buzzo

Esta cidade agora é mais real do que qualquer outra, até mesmo do que a cidade natal, aqui é onde tudo acontece, onde se acorda, se dorme, se respira, onde afinal se está. O pão da manhã nada tem a ver com outros já experimentados, a secura do ar é a de uma atmosfera redescoberta, o ruído da passagem dos trens corta a escuridão da noite. Percorre-se ou vive-se, de fato, no dia a dia de uma região delimitada em tão grandes anseios do coração?

Ainda assim, há certa fantastiquice neste mundo recriado ao redor da existência. Não são carros que passam pela ponte ao longe, e sim um exército de formigas que a atravessam, como pontos negros escorregadios com firmes objetivos. Os caminhões nesta cidade são pequenos brinquedos rolando sobre a mão invisível de uma grande criança, rebrilhando sob o sol poente. E a liquidez do rio largo atesta a veracidade da presença do homem há séculos.

Polvos sorridentes e peixes estão calcificados nos ladrilhos brancos e pretos, os prédios estão como que liquefeitos nas esquinas e os dias escorrem levitando ao sabor das ondas do rio imenso. Um fio no horizonte azul sustenta telecabines futurísticas a transportar seus habitantes. E mais peixes, lontras, águas-vivas, estrelas-do-mar e pinguins aqui se instalaram e passaram a viver num gigantesco aquário, resguardados da fúria e impiedade humanas.

Envoltas por aromas inesperados, bailam nos teatros virgens arrastando seus vestidos de tule amplo e branco. Estão elas assim, bem acordadas pela noite, a enfeitiçar rumo à perdição com sua dança os homens desavisados. Marcam com os pés o ritmo incessante, com movimentos de mãos e braços reacendem o fogo. E o tímpano torna a música pungente e dramática, lançando os espectadores na espiral de sentimentos dos protagonistas.

À beira dos campos, surgem da terra seca e áspera, como brotos de pedras, videiras de troncos retorcidos. Cata-ventos brancos e monstruosos mostram as proporções distintas e surreais destas paragens. Esta cidade é, enfim, como todas as outras cidades do mundo, escondidas ou esquecidas, à espera do descobrimento. Que elas não sejam maculadas com música, moedas ou artifícios estrangeiros, que a vela não se apague. Sua existência depende apenas de aterrissar nelas e, a partir daí, trazê-las à tona, arriscando-se futuramente à uma lembrança amena ou ao esquecimento ocasionado pelas paisagens indistintas.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 31/7/2014

 

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