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Quinta-feira, 7/8/2014
Duas distopias à brasileira
Carla Ceres

Nada como os imprevistos cotidianos, as falhas de caráter e as divergências de opinião dos cidadãos para minar qualquer utopia. Por mais isoladas das "más influências externas" que estejam, as tentativas de construir sociedades ideais descambam para a violência, a corrupção e a luta desleal pelo poder porque seres humanos ideais não existem e, além disso, o paraíso de uns costuma ser o inferno de outros. Até hoje, esses sonhos de harmonia só resistiram e terminaram bem no campo literário, no qual continuam interessantes como obras de arte ou por retratarem os contextos históricos dos quais se originaram.

A ficção científica até gosta de uma utopiazinha motivadora no fim do arco-íris, mas seu forte mesmo são as distopias, as sociedades opressivas, em ruína material e moral. Atualmente, os cenários pós-apocalípticos cheios de zumbis dominam livrarias e telas de TV, atingindo muitos escritores brasileiros, mas não é de hoje que importamos modas literárias voltadas ao grande público. Monteiro Lobato, inspirado nas obras de H. G. Wells, levou três semanas para escrever O presidente negro ou o choque das raças, com a intenção de exportá-lo para os Estados Unidos. Não conseguiu. Vários editores se ofenderam com o conteúdo racista do livro.

Não vou entrar na discussão sobre o racismo nem sobre o evidente machismo de Lobato. Sem dúvida, suas ideias eram muito comuns na época e, por absurdo que nos pareça hoje em dia, possuíam status científico. O final de O presidente negro, com a vitória vergonhosa dos brancos "solucionando" a questão racial, é revoltante. Perto desse horror, acompanhar sua implicância com as feministas me diverte. A personagem Miss Elvin, por exemplo, desenvolve a teoria absurda de que a mulher não seria a "fêmea natural" do homem. As verdadeiras fêmeas humanas teriam sido repudiadas pelos homens, que preferiram acasalar-se com as mulheres, fêmeas de um povo anfíbio, cujos machos teriam sido exterminados pelos homens. Mulheres e homens, portanto, pertenceriam a espécies diferentes, segundo o livro Simbiose desmascarada, de Miss Elvin. Dá pra levar a sério?

Bom polemista, Lobato não hesitava em ridicularizar seus oponentes, atribuindo-lhes argumentos estapafúrdios. Sua representação caricatural do feminismo no ano de 2228, quando se passa a história de O presidente negro, tem a mesma virulência debochada de seu ataque à pintura de Anita Malfatti, no artigo "Paranoia ou mistificação". Muito mais interessante do que a reação lobatiana às reivindicações das mulheres foi a crônica de Humberto de Campos "O feminismo triunfante (Diário de um rapaz solteiro em 1960)". Sim, no Brasil, até as distopias viram piada.

Publicada em 1934, no livro Sombras que sofrem, a crônica reúne páginas do diário de um pobre rapaz solteiro, escritas oito anos após a "Revolução Feminina de 1952". O protagonista mora em um Rio de Janeiro dominado pelas mulheres. Seu principal medo é o de "ficar para tio", pois, aos vinte e cinco anos, ainda não foi pedido em casamento nem uma vez. "No entanto", comenta, "não sou, que se diga, um rapaz feio, Nem desprovido de prendas domésticas. Tenho bonitos olhos, boca bem feita, e visto-me com elegância. Sei tocar piano, danço bailados clássicos, e posso, como poucos, tomar conta de uma casa. A mulher que me escolhesse para esposo, conservar-me-ia ao lado, pelo menos um ano."

A terrível situação dos homens após o divórcio também é mencionada. Sobre a moça que pediu seu irmão em casamento, a "Dra. Inez de Albuquerque, engenheira da fábrica de aviões da firma Ana Maria & Filha", ele escreve: "A noiva tem 32 anos, e acaba de divorciar-se do vigésimo segundo marido, o qual fica, pode-se dizer, ao desamparo. O penúltimo está empregado em um 'atelier' de costura, e o antepenúltimo, como ama seca na casa da senadora Carmen Pappagenti. Os outros desventurados degradaram-se depois de abandonados, vivendo como o Diabo quer e Deus consente".

Como o texto não é dos mais fáceis de se encontrar, adianto que, no fim, o rapaz recebe uma proposta de casamento de uma divorciada que "antes de casar, teve uma vida um pouco boêmia, excedendo-se na bebida e sustentando amantes". Através da inversão de papéis, a crônica pinta um retrato interessante da vida das moças na década de 1930. Embora sua intenção não seja a de prever o futuro, muitas das situações "futurísticas" que menciona tornaram-se corriqueiras. Ninguém se espanta mais com a presença feminina em profissões de nível superior ou nas Forças Armadas. Quanto aO presidente negro, apenas a parte boa se cumpriu. Para isso servem as distopias, para alertar sobre os maus caminhos.

Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/

Carla Ceres
Piracicaba, 7/8/2014

 

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