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Segunda-feira, 29/9/2014
A vida do livreiro A.J. Fikry, de Gabrielle Zevin
Ricardo de Mattos

"Nenhum homem é uma ilha; cada livro é um mundo" (A. J. Fikry)

Para minha Lily

O prédio da Avenida Paulista que sedia o Digestivo Cultural na cidade de São Paulo foi abalado, durante alguns dias, pela tensa e levemente acre polêmica a respeito de escritores imberbes, pré-adolescentes e adolescentes. Ao cafofo que organizamos no subsolo entre caixas de livros e obras de arte - a sala a nós disponibilizada no quinto andar pelo diretor J. D. Borges deixamo-la reservada para a visita de S.M.R. Elisabeth II - chegavam-nos as atualizações diárias junto com chá e sequilhos. Ficamos a par, portanto, sobre quem levantou a voz e sobre quem deixou de tomar o elevador com quem. Curiosamente, foi nesta esta época que soubemos do lançamento do livro A vida do livreiro A. J. Fikry, da escritora norte-americana Gabrielle Zevin (1977). A coincidência, atribuímo-la ao fato da segunda orelha do livro informar que a autora começou sua carreira com outro livro aos catorze anos. Como diz a famigerada marquesa d'As ligações perigosas, não se aplaude o tenor por limpar a garganta. Todavia, para quem gosta, podemos comparar A vida do livreiro... a mousse de chocolate. Já saboreamos antes, as receitas variam pouco, mas nem sequer em estado vegetativo rejeitaríamos a sobremesa.

Por que apreciamos a biografia deste livreiro fictício? Fazendo coro ao delegado Lambiase, "eu gosto de conversar sobre livros com pessoas que gostam de conversar sobre livros. Gosto de papel. Gosto da textura e gosto de sentir um livro no bolso. Gosto do cheiro de livro novo também". Lembramo-nos da tira da família Brasil, criada por Luis Fernando Veríssimo. Após a defesa do computador ou do videogame pelo filho no primeiro quadro, o pai conclui no segundo: "cheiro de livro é melhor". Fetichismo à parte, é mesmo. Não adquirimos um exemplar sem conferir - explicitamente ou não - o perfume que varia conforme o papel, a tinta e a cola.

A vida do livreiro... é um epítome, um quadro, uma síntese do conforto. A narrativa desenvolve-se em sua maior parte na Island Books a única livraria da ilha Alice, à qual se chega de balsa após algumas horas de estrada no continente. Livraria em estilo vitoriano na qual o jovem e neurastênico proprietário A. J. Fikry, si concede à literatura comercial o suficiente para manter o negócio aberto, privilegia a nata literária. O estabelecimento é o pólo atrativo do delegado local - convertido em leitor -, da parentela do livreiro e de uma representante editorial. Foi o local escolhido para acolher a órfã Maya, criada nos primeiros dias pelo livreiro com auxílio do Google. Necessário ressaltar que o único animal de estimação mencionado é o gato da representante editorial. Já foi provado que gatos ficam em segundo lugar como companheiros ideais de leitura, sendo a primeira colocação exclusiva dos cães - inclusive porque podem carregar o livro para nós.


Gabrielle Zevin

O leitor logo perceberá como a história desenvolver-se-á. Como será finalizada, Zevin consegue fugir do previsível. Ilha estável, estabelecimento com os altos e baixos, livros e pessoas amigas, problemas que surgem numa sequência que permite dedicação e rápida solução. É a vida com andamento equilibrado, em que prós e contras são vividos de forma equânime, sem algo imperar de tal forma que feche a visão para o resto. Usufrui-se sem sustos do que é natural.

Há pontos de identificação entre a livraria do romance e a livraria real gerenciada pela companheira de nossos dias. A razão de sustento das livrarias é inversa a dos supermercados. Nestes, aufere-se maior ganho com gêneros alimentícios básicos, não com geleia e chiclete. Já as livrarias sobrevivem da venda de geleia e chiclete. Que cada um responda por sua dentição. De qualquer forma, assim como a livraria de Fikry acaba sendo a central de notícias da ilha - goste-o ou não - a livraria real tem sua função noticiosa cultivada há décadas. Desencarna alguém? "Avisa na livraria". Alguma palestra ou evento? "Gruda o cartaz no vidro (da porta) da livraria". Precisa entregar alguma coisa, mas o horário é incompatível? "Deixa na livraria que eu pego depois". Há visitantes diários, fixos, que adentram o estabelecimento apenas para colher novidades e tentar tomar café. Chamamo-los "turma da manhã" e "turma da tarde". É a única casa que conhecemos onde o cliente de confiança tem direito à "caderneta", à inscrição de seu débito num caderno para posterior acerto. A diferença marcante é a ausência de clubes temáticos de leitura, modalidade de reunião espiritual que parece não fazer parte da nossa realidade.

A epígrafe do livro tem origem híbrida. "Nenhum homem é uma ilha; cada livro é um mundo". A primeira parte é trecho de reflexão de John Donne, clérigo e poeta inglês. "Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é parte de um continente, parte de um todo", é o pensamento completo. É também o título de um livro do monge católico e escritor Thomas Merton. Já o complemento não conseguimos atribuir a ninguém senão à própria Zevin. Verificando os resultados do buscador, impressionante como o mesmo texto repete-se pela infinidade de sítios e de "blogs".

Os capítulos são todos antecedidos pela impressão do livreiro sobre um conto ou novela. Os autores mencionados são mais ou menos conhecidos do público daqui. Scott Fitzgerald, Flannery O'Connor, Mark Twain, etc. Ao final é que sabemos o que elas significam e temos mais uma vez confirmada a afirmação de Albert Camus: "... as últimas páginas de um livro já estão nas primeiras". A despeito disso, as referências pululam aqui ou ali, explícitas ou implícitas. Quando alguém afirma que a arma aludida no primeiro capítulo deve disparar no terceiro, remete-nos a Checkov, que depois é lembrado por meio da referência ao Tio Vânia. O livro de Zevin tem o mérito de, por meio dele, podermos mostrar aos jovens leitores como a leitura pode ser entrosada em nossa existência e lembrar-nos de que não estamos sós em nossas reflexões e sentimentos. "Lemos para saber que não estamos sós", mais que uma citação não identificada como de C. S. Lewis, pode ser tido como lema de todo um estilo de vivência. Inclui a defesa do livro de papel, mas não se limita a isto. A despeito, para não esquecer a presença marcante do humor, o livreiro Fikry descobriu uma utilidade para o e-reader ganho da mãe: possibilitar a leitura em área hospitalar de isolamento.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 29/9/2014

 

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