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Quarta-feira, 10/12/2014
Viagem a 1968: Tropeços e Desventuras
Marilia Mota Silva


Poderia dizer que vivi numa redoma. Ou numa ilha no alto da montanha. Até os 18 anos, meu mundo cabia num raio de 500 metros, se tanto.

A três quarteirões ficava o colégio. Mais à esquerda, no alto da ladeira, a Igreja Matriz contemplava a praça, as lojas, o centro da cidade. Atrás de casa, do colégio e da igreja, passava o rio de barrancos altos, guardado por bambuais fechados, paineiras, quaresmeiras. Rio calmo e traiçoeiro nos meses secos. Nervoso e truculento nos meses prenhes de fevereiro e março. Vinha de longe, abrindo caminho ao pé da montanha que subia na outra margem, onde uma estrada estreita, cortada em seu flanco, levava à Aparecida do Norte e ao Rio de Janeiro.

Um pouco mais ao sul, as montanhas se afastavam, abrindo uma planície onde ficavam o mercado, charretes com cavalos, o Posto de Puericultura, a Vila Vicentina, que acolhia os velhos sem família, um orfanato, a escola de Horticultura e mais adiante, a continuaçao da estrada.

Tínhamos dois colégios: o das Irmãs, de orientação francesa, exclusivo para meninas, preparava a jovem para ser professora de crianças, esposa, mãe, dona-de-casa; e o Ginásio dos Padres, exclusivo para meninos, preparava os rapazes para o Curso de Engenharia, ou outra profissão de sua escolha.

A Missa de Domingo era o ponto alto da semana além de obrigação sagrada.

E havia a praça! Depois da missa e nos fins de tarde era lá que os jovens se encontravam. As moças, de mão ou braço dado com as amigas, davam voltas e voltas no passeio largo que contornava a parte central, ajardinada, com canteiros e árvores, coreto e estátua. Os rapazes faziam o mesmo, davam voltas e voltas, mas em sentido contrário, para olhar as moças e serem olhados. Nove horas da noite, o movimento diminuía. Era a hora limite para se estar em casa. Tudo ordenado, preciso. Todos cuidavam para que nada alterasse a delicada harmonia, em que até uma gargalhada de menina apresentava um risco.

Minha amiga Terezinha, que morava em frente, costumava brincar comigo depois da escola. Uma dessas tardes de domingo em que o tempo pára, estávamos, ela, eu e minhas irmãs conversando no jardim da minha casa; os adultos na varanda. Até que uma gargalhada plena, gostosa quebrou o marasmo: Terezinha. O pai dela, com voz em falsete, alterada, mandou-a para casa. Ela foi, sem saber o que tinha feito de errado. Soubemos mais tarde: foi a risada. "Menina direita não podia rir daquele jeito", o pai deu-lhe uns tapas, proibiu-a de brincar por duas semanas. O que é uma menina direita, perguntamos? Não pode rir? Sim, podia rir, é claro, mas baixinho, com discrição, modéstia. Uma moça educada não chama a atenção sobre si, quem faz isso é mulher que não se dá ao respeito.

* * *
Não me lembro a data ou a sequência dos acontecimentos, pequenos acontecimentos sem importância em si, mas que juntos indicavam mudanças, tremores no solo frágil que nos sustentava.

Um dia a cidade amanheceu sem o Vigário, um holandês alto, vigoroso, que acumulava as funções de pároco com a direção do Ginásio dos Padres. A Diretora Administrativa desapareceu também. Um belo casal, forte, saudável, nos seus quarenta anos.

Mas pode? Não pode! O povo indignado: os votos clericais não são para sempre?! E onde ficam os sermões exaltados, falando de luxúria, do horror do inferno, as labaredas eternas, o pecado da carne! E agora? Se ele acreditasse no que pregava não teria feito isso. E a madamezinha, quem diria! Com seus olhinhos azuis, sempre olhando de cima, como se o resto do povo fosse inseto! Tinham deixado bilhete explicando tudo. Tinham escrito ao Papa. Foram recomeçar a vida em outra cidade, bem longe. Veio outro vigário, a vida voltou aos trilhos. Ou quase.

Sem mais nem menos, a Santa Missa mudou. Renegou-se o latim. O padre que celebrava os ritos de costas para os fiéis agora nos olhava de frente, e falando em português. Acabou-se o mistério, os sons encantatórios que nos embalavam, nos conduziam ao sublime, ao imponderável. E a batina! Os padres passaram a usar calças como qualquer homem.

Quando terminávamos a oitava série, uma colega anunciou que não faria o Curso Normal. Ia se transferir para o Ginásio dos Padres, gostava de matemática, ia ser engenheira. Houve muito cochicho e revirar de olhos:"Uma moça sozinha no meio dos rapazes! Os pais permitiram? Os padres não vão aceitar. Os rapazes não tem modos, falam palavrão. E se ficar só nisso, já está muito bom! Depois não reclama!" Ela foi, e o mundo não acabou. Aos poucos, outras jovens que não queriam ser professoras ou não se adaptavam às freiras, se foram também.

Trincas na tradição, no inexpugnável, no estabelecido em pedra e cal.

* * *
Não se liam jornais em minha casa. Nem o jornal local. Gibis, revistas em quadrinhos eram proibidos. Se fôssemos flagradas com um Tio Patinhas, a revista ia para o lixo, em pedaços, não importa quem a tivesse emprestado. Problema nosso. Livros também eram poucos: só os didáticos, exigidos pela escola. O Missal, com orações para acompanhar a missa, cada um tinha o seu - o meu tinha capa perolada, com letras e contorno dourado; ganhei no dia da Primeira Comunhão.

Revistas, assinávamos duas: A Ave Maria e A Família Cristã.

Não que meus pais não valorizassem a cultura. Meu pai formou um grupo de teatro amador que durou anos. Até o internato do Colégio das Irmãs ia assistir a suas peças. A saída das moças era, em si, um evento e, para nós, uma consagração: de uniforme, sem olhar para os lados, chegavam em fila, em silêncio, e ocupavam as cadeiras, metade da plateia. Infelizmente, ainda era criança quando meu pai extraiu dois dentes, o que lhe prejudicou a dicção; perfeccionista que era, desfez o grupo e nunca mais falou no assunto. Só me lembro de uma peça a que assisti muitas vezes, quando tinha cinco anos. João Alfinete, um musical infantil: "João Alfinete, na dura lida, de toda a vida, vai se acabar, pega na agulha até sai fagulha, quando começa a costurar". Havia príncipe, com manto de veludo e arminho, coroa e cetro, Luiz Gonzaga, um rapazinho que eu achava lindo. Havia tempestade, raios e trovões feitos com uma prancha enorme de papelão, lanternas, celofane. Efeitos especiais que encantavam a plateia!

Teatro, dança, música eram permitidos, desde que sob supervisão, e desde que meninos fossem mantidos à distância. Mal demonstrei inclinação para música, aos onze anos, ganhei um piano, que ainda me acompanha. Pago em ponderadas prestações.

Para completar o cenário de uma infância querida havia o quintal que circundava a casa em três lados. Imenso, misterioso, um alvoroço de plantas radiantes onde as mangueiras reinavam, maternais. Em se plantando tudo dá. Ali não precisava nem plantar. O vento, os passarinhos e meu avô paterno, português, que não cheguei a conhecer, e plantara o jardim original, seriam responsáveis por aquele frenesi de vida: roseiras, pessegueiros, ramos pesados de maracujá, laranjeiras antigas, pés de romã, pitanga, paineiras. Mais perto do chão, arbustos, açucenas, cristais de orvalho trêmulos no frio da manhã, em folhas de taioba mais altas do que eu. E o silêncio, o murmúrio das plantas.

No entanto, profundas divergências entre meus pais se traduziam em tensão, em agonia permanente. O colégio era o meu refúgio. Gostava de tudo lá: os pátios sempre frescos, as árvores antigas, as estrias deixadas pelo ancinho na terra macia, as quadras de vôlei, as mesas de ping-pong, o cheiro de cipreste e rosas, o silêncio farfalhante das freiras. Elas vestiam hábitos pesados de casimira preta, véu preto cobrindo rigorosamente os cabelos, uma armação branca, contornando o rosto, de orelha a orelha, de forma a reduzir a visão lateral; golas altas, rentes sob o queixo.

Uma vez fui Dom Pedro II, nas comemorações da Semana da Pátria. Desembainhei a espada, pesada (remanescente do teatro de meu pai), montada num cavalo de pau, e usando a saia do uniforme; tinha oito anos, mas mesmo nessa idade, uma menina não podia usar calças compridas. Nem mesmo pra encenar um personagem.

Um bom colégio. O que aprendi lá me serviu a vida inteira: português e matemática. Latim, francês e inglês. Noções de física e química. Música, Canto, Moral e Cívica. História. História era apenas um exercício para a memória. Datas, nomes, guerras, fragmentos isolados, sem contexto, como se fosse imprescindível evitar qualquer compreensão crítica dos fatos.

No Curso Normal, entre matérias como Higiene e Puericultura, Educação especializada (para jardim-de-infância), noções de psicologia, noções de filosofia, estudamos literatura portuguesa e brasileira.

Os livros didáticos traziam trechos de autores antigos, Camões, Antero de Quental, Gil Vicente, Alexandre Herculano, e mais modernos, Eça de Queirós, Machado de Assis, Visconde de Taunay. Nosso estudo se restringia a esses trechos. Não tínhamos acesso às obras. Não eram apropriadas para moças e algumas delas estavam no Índex da Igreja, diziam as Irmãs gravemente, fechando a questão.

Uns poucos autores circulavam entre nós: Rainer Maria Rilke, Saint-Exupery, Michel Quoist.

Um colégio que cumpria com brilho sua missão: preparar as jovens para o lar. O mundo fora de casa era privilégio masculino.

* * *

Cumpri, tangida, obediente, o ritual do baile de debutante. O senso de ridículo me atormentava. O vestido rosa claro de cetim de seda pura, todo bordado, drapeado para disfarçar os seios que mal despontavam; os arcos de flores artificiais, os apresentadores, seus sorrisos e vozes estridentes descrevendo as jovens apresentadas à sociedade: a coisa toda me doía fisicamente.

Mas o efeito foi bom: Prometi a mim mesma que nunca mais me deixaria levar por decisões ou vontade alheias. Seria independente, viveria a minha vida, tomaria as minhas decisões.

Nunca sonhei com vestido de noiva. Casar me parecia o fim da vida que mal começava. Um salto entre a adolescência cerceada, oprimida, para a prisão do casamento, de um marido no comando, cujas vontades valeriam tudo. Marido que deveria ser respeitado, adulado, compreendido, acatado, poupado de qualquer dissabor, qualquer problema dos filhos e da casa. O casamento para mim significava o fim de todas as possibilidades, o enterro do futuro, da pessoa que se poderia ser.

- O homem começa a ser quando se casa. Vai trabalhar, aprende coisas novas, progride, é respeitado pelo que faz, é uma pessoa. A mulher acaba: vai cuidar de almoço e jantar, de supermercado e roupas limpas e camas feitas, todo dia, e fraldas e filhos, e marido, sem descanso, e para sempre. Mulher não se aposenta."

- É a lei natural, minha mãe dizia. - Cada um tem sua cruz para carregar, gostando ou não.

O piano era minha terapia, minha salvação.

Talvez, se tivesse despertado para o sexo, o romantismo, o desejo de amor e intimidade me confundissem. Mas não pensava nisso. Achava que sabia tudo sobre o assunto e não me interessava. Então foi um susto quando a Irmã, professora de Higiene e Puericultura, desenhou no quadro verde algo que lembrava uma cara de boi com chifres, disse que aquilo era o aparelho reprodutor feminino, e passando o giz em cima, acrescentou: "com a introdução do pênis na vagina"... O quê? Ouvi direito? Olhei em volta, as colegas estavam sérias, mas não surpresas. Então era isso, era assim? Eu pensava que a gravidez acontecia como doença, por contágio. E para isso as pessoas casadas dormiam na mesma cama, se abraçavam e se beijavam. Para facilitar o contágio! Mas introduzir? Como assim? Introduzir?

Só então comecei a ligar os fatos. Há pouco tempo, no jardim de casa, tinha visto duas borboletas voando coladas uma atrás da outra. Achei lindo! Disse, olha, a mãe ensinando a filha a voar! Ninguém compartilhou do meu entusiasmo, me parecia agora, lembrando, que houve risinhos de canto de boca, troca de olhares. E os cachorros engatados. O galo em cima das galinhas. Sempre achei que fosse briga! Eu ficava espantada que as galinhas suportassem calmamente o peso deles e ficassem ali quietinhas, como que gostando. Então era isso!

- E eles fazem essa introdução uma vez, quando se casam? E aí ficam os espermas reservados nas trompas, por exemplo e, eventualmente, um se junta ao óvulo?

- Não, ao contrário. Há muitas introduções que não resultam em fecundação". Hmmm...então meus pais introduziam muito, e até recentemente, pois mamãe tinha ficado grávida de novo, aos 48 anos. A madrasta da minha amiga Terezinha tinha perdido o bebê, há pouco tempo, o enxovalzinho todo pronto, e ela parecia ter uns 200 anos. Todo mundo falava em castidade, em pudor, em pecado! Nosso corpo é o templo do Divino Espírito Santo, é sagrado! Recato, modéstia, vestidos com manga e sem decote. E, no entanto, viviam introduzindo o tempo todo! Com aquelas caras taciturnas, sempre reprovando, sempre condenando. Até risada!

Foi a gota d'água. Perdi qualquer respeito que ainda tivesse pela opinião ou crença dos adultos. Deixei de ir atrás de professoras, freiras ou padre para conversar sobre religião, sobre a vida. De toda a educação que eu recebera, valores, respeito, concepção do mundo, não me restava nada; nenhum pilar em pé; nada onde me apoiar. Teria que me reconstruir aos poucos, sozinha. E se algum dia fosse mãe, prometi a mim mesma, nunca agiria do mesmo jeito, com tanta falta de respeito pelos filhos.

Mal dormia à noite, pensava muito: O enigma da vida, da nossa identidade. A nave espacial que habitamos, movida à energia de uma estrela, girando em torno dela, como se um cabo invisível nos unisse. A vida eterna. Viver para sempre - sempre? Seria sufocante. Morrer, sim, a seu tempo, naturalmente, como as plantas e os bichos; como quem dorme à noite, cansado e contente, depois de um dia bem vivido.Uns chegam, outros partem, e a Vida continua.

Inferno, punição eterna, chamas eternas: que pai ou mãe, por mais cruéis que fossem, puniriam os filhos dessa maneira? Deus nos deu de presente a vida. Se os pais dão um presente ao filho, a melhor maneira de agradecer-lhes é apreciar o presente, usufruir dele.

Aceitar a vida e o que nos foi dado saber, com humildade. Aceitar o que somos e o que não sabemos. Viver o melhor possível. Descobria, aos poucos, o que fazia sentido para mim.

Nos fins de semana, visitava os velhos da Vila Vicentina, ou pobres da periferia. Ia de bicicleta com uma irmã ou amigas. Quando um rapaz me pedia pra namorar, inventava uma desculpa. Me sentia muito jovem, e eles me intimidavam.

* * *
Entendi que se engravidava por introdução e não como quem pega tuberculose, mas passaram-se anos ainda até eu descobrir as proezas de que era capaz a trombinha que via nos meninos! Deve vir daí o impulso deles de criar super-heróis, todos parecidos. O carinha é comum, pálido, meio tímido, e de repente, sha-zam! Fica destemido, bravo, musculoso, vara o céu voando, pode tudo, vence tudo. Mas naquela época, essa ideia não me ocorreu. Se tivesse lido gibis talvez fosse mais esperta. Em minha defesa, lembro que vivia num universo quase exclusivamente feminino. Colégio só de mulheres. Família, só mulheres. Meu único irmão era criança ainda quando saí de casa.

Recebi o diploma de normalista e, no mês seguinte, comecei a dar aulas no colégio, no curso de admissão ao ginásio, que durava os três meses de férias. Desde que tinha decidido que sairia de casa para estudar fora, guardava o que podia, do que ganhava dando aulas.

Falei de meus planos a minha mãe. Queria ir para Belo Horizonte. Ou Rio ou São Paulo, queria continuar os estudos, queria ser independente. Não queria me casar, não queria uma vida como a dela, de todas as mulheres que eu conhecia.

O rosto de minha mãe se inflamou. -Nem pense nisso! ela gritou.
-Eu não permito. Você é menor de idade, não vai a lugar nenhum sem minha autorização. Batia no peito com uma decisão desesperada:
-A lei me protege!"

No entanto, o estudo ocupava um lugar sagrado entre suas devoções, ao lado apenas do caráter e da religião, o tripé essencial de um ser humano respeitável. Ela acreditava nisso com tal paixão que não poupava conselhos a qualquer desavisado que lhe cruzasse o caminho. Se descobria alguém analfabeto, uma lavadeira, um feirante, gente que se mudou da roça pra cidade há pouco tempo, encarregava uma das filhas de ensinar-lhes, usando, se preciso, de toda a simpatia e argumentos para convencer o aluno relutante.

Nem os pedintes escapavam de seu entusiasmo. No interior, os mendigos tem sua rota preferencial, seus "clientes" fixos. Se uma mendiga levava consigo um filho em idade escolar, mamãe explicava que a criança devia estar na escola, fazia um sermão sobre a importância do estudo e lhe dizia o que fazer. Se na próxima visita, a situação não estivesse resolvida, mamãe ia ela mesma fazer a matrícula da criança e ajudava de todas as formas que podia. Não demorava muito e a mendiga mudava o itinerário, não passava mais por nossa rua. Mamãe ttinha paixão pelo estudo. Ela teve que deixar o colégio interno, aos 16 anos, quando seu pai foi morto, e nunca se recuperou da perda dupla.

As filhas, ela queria professoras. Queria-nos capazes, se fosse preciso, de ganhar a própria vida, mesmo que modestamente, em um emprego digno, ela dizia. Ou que fôssemos para o convento. Por sua vontade, iríamos todas para o convento.

Mas o que eu pretendia estava fora de questão. Eu não queria o convento, com seus votos de obediência, disciplina, hierarquia, clausura; também não tinha vocação para professorinha, ganhando para os alfinetes, e vivendo com os pais, ou com uma irmã casada. Não queria me casar e viver submissa ao marido, como tinha vivido até então, obediente aos pais. Eu queria ser dona da minha vida, e isso ia além do que ela e a sociedade admitiam.

- Uma filha só sai de casa pelos braços do marido!, dizia. -Não quer se casar, não precisa, e não deve mesmo, que casamento é uma cruz que não desejo para mulher nenhuma e muito menos para minhas filhas . Mas sair de casa? Isso não é possível. Uma moça não pode andar solta pelo mundo. Não pode. Não é possível. Isso é crise de adolescente que não entende nada e pensa que pode tudo. Isso passa!

Fiquei. Fui dar aula para crianças. Minha mãe me vigiava. Se me pegasse lendo escondido algum livro antigo, gramática, inglês, livro de história dos tempos de ginásio, o mundo caía. " O que é isso? Está lendo isso aí pra que?" Sumia com o livro e me mandava fazer alguma coisa.

Não criei atrito nem sofrimento inútil. Não falei mais em sair de casa, em continuar os estudos. Mas continuei procurando uma saída. Falei com as freiras com quem tinha mais afinidade, se a congregação não teria um colégio, um convento, um internato, um lugar seguro onde eu pudesse ficar em Belo Horizonte, ou no Rio, ou São Paulo. Apenas por algum tempo até eu me situar, entrar para a faculdade e arranjar emprego. Olhares reservados, cabeças baixas. Um Não absoluto.

Falei com o prefeito, fui à casa dele. Fui delicadamente enxotada. Sei que não tinha nada que fazer lá, mas não tinha a quem recorrer, com quem me aconselhar. Iria para Sao Paulo, com as Irmãs Paulinas, quando elas viessem renovar a assinatura da revista A Familia Cristã, decidi. Fechadas todas as portas, essa seria minha única saída.

Um dia, conversando com uma amiga, soube que uma ex-colega, Irene, estava morando em Belo Horizonte; o pai militar tinha sido transferido para lá. Ela estava fazendo o cursinho para o vestibular de Jornalismo. Escrevi-lhe sobre minhas intenções. Irene me enviou uma longa carta. Se fosse a Belo Horizonte, que fosse procurá-la. O vestibular acontecia, normalmente, em meados de fevereiro, era preciso que eu fosse para lá o mais rápido que pudesse, ela frequentava um curso preparatório muito bom e eu poderia pegar umas aulas, embora já estivéssemos no fim do ano.

Finalmente havia alguma coisa em que me agarrar, uma pessoa, um endereço. Pedi que me avisasse com antecedência quando fosse o tempo de se inscrever. Trocamos mais algumas cartas. Informações basicamente. Documentos que eu devia providenciar, endereço da faculdade. Meu plano era pedir que ela fizesse minha inscrição e, na véspera das provas, eu pegaria o ônibus para Belo Horizonte, deixando um bilhete para mamãe.

Em janeiro de 1968, um primo, que morava em Belo Horizonte e pouco nos visitava, trouxe a filha adolescente para passar quinze dias conosco. No fim do mês, veio buscá-la e convidou-nos, a mim e minha irmã para passar o resto das férias com eles. Meus pais não tiveram como negar, seria ofensivo, ele havia lhes confiado sua filha. Mal acreditei no que acontecia!

Levo escondido os documentos necessários, caneta, lápis, e o endereço da minha amiga, como uma relíquia. No dia seguinte ainda cedo, ligo para a casa dela. Irene me avisa que as inscrições estão abertas, que devo ir lá imediatamente, pegar a papelada, que ela me ajudaria a preencher.

Aviso Norma, a mulher de meu primo, que vou visitar uma amiga. Ela se preocupa, pergunta se dou conta de ir sozinha, me diz o qe fazer. Tomo nota de tudo. É cedo ainda, tenho o dia todo pela frente.

Eu sozinha na cidade grande! Andar de ônibus, passar na roleta me parece estranho: pessoas tratadas como gado. A cada passo uma novidade. Elevador! As pessoas pertíssimo umas das outras, e com caras de múmia, se ignorando! Ria sozinha, achava irresistível.

Fui primeiro à faculdade. Subi a rampa de cimento com um tremor no corpo, como quem caminha na corda-bamba. Minha vida estava em jogo. Fui à Secretaria, me informei, teria que preencher formulários, apresentar documentos. Peguei o envelope com a papelada e fui para Sta Ifigênia. Irene me acolheu com um carinho inesperado que me comove ainda.

Até aquele dia, eu só tinha visto máquina de datilografia à distância, no escritório da Madre Superiora. Irene tinha uma em casa, de seu pai, e datilografava muito bem. Preencheu minhas fichas e formulários e voltei para a faculdade. Inscrição feita, número 605. Não era o vestibular unificado ainda.

Irene me convidou para ficar em sua casa alguns dias, para estudarmos juntas. Ela estudava, eu sentia um sono irresistível. Voltei para a casa dos primos depois de cinco dias. Minha irmã me disse que era era tempo de ir embora. Pedi que fosse sozinha, eu ficaria mais um pouco, ia prestar vestibular.

Contando agora, passado tanto tempo, tudo se resume em poucas palavras. Tensão, exaltação, medo, os nervos à flor da pele, a alegria! O silêncio no meio de tanta gente, o prazer de estar sozinha! E descobrir novidades como escada rolante, prédio de garagens, com elevador para carros! Tomar café com leite em balcão de padaria. Conquistas! Prazeres sem medida!

As provas de inglês, português, psicotécnico, nada demais. Mesmo matemática não me causou muita impressão. Mas História, eu não sabia nada. Perguntavam sobre Encilhamento. Encilhar que eu soubesse era por sela no cavalo. Nunca vi a palavra empregada de outro jeito. Revolta dos Tenentes, Os 18 do Forte. O Estado Novo. Que Estado Novo? Se me perguntassem os nomes dos Presidentes da República, e quando governaram, eu saberia. Nome das capitanias hereditárias, datas, tudo bem, mas ... mas como era prova de múltipla escolha, sapequei os as e bês, eliminando as respostas obviamente erradas. E mais não dava. Esperei o resultado sem muita esperança. Meus anfitriões, mesmo vendo que minha estada se prolongava, já fazia quase um mês que eu chegara, continuaram gentis, e eu fazia o possível para me integrar à rotina da casa.

Passados poucos dias, longuíssimos, quietos, saiu o resultado. Irene me ligou, fomos aprovadas. Na faculdade, ela conferiu a lista. Confirmado. Pintaram-nos o rosto, jogaram talco, escreveram UFMG nos braços, nos puseram uma capa azul de plástico. Não fiquei para festejar com os outros. Minha estada tinha se prolongado além da conta, eu tinha que ir para casa, e voltar a tempo de fazer a matrícula. Precisava de um lugar pra ficar quando chegasse, de preferência no centro, ou perto da faculdade. Luciana, amiga de Irene me recomendou uma pensão na Rua Timbiras, onde ela havia se hospedado por uns dias. Escreveu o endereço ali mesmo. Pronto! Tinha tudo o que precisava.

Luciana, Irene,um veterano e eu.

Mandei um telegrama para casa. "Passei vestibular Jornalismo". Sem mais nada, nem abraços, porque o dinheiro daria apenas para a viagem de volta. Para me garantir, passei na rodoviária e comprei passagem para a manhã seguinte, que o ônibus da noite estava lotado.

Voltei para casa dos primos, ainda com a capa de plástico, braços e rosto pintados. Esperava uns parabéns, uns sorrisos, que em casa eu não teria isso. Não houve, evitaram até olhar para mim; não entendi, fiquei meio perdida. Talvez receassem a desaprovação de meus pais; sem querer, eles tinham me ajudado.

Mas não me demorei pensando nisso porque o medo do que me esperava em casa me tomava todos os sentidos. Antecipava dias de angústia, de acusações, de perdão impossível; eu tinha 18 anos, agora, mamãe não poderia mais me impedir, mas falaria de seu coração dilacerado, das coisas horríveis a que eu estaria exposta, do suicídio moral que estava cometendo. Não teria sua bênção.

Chorei a viagem inteira de volta. Tentava me conter mas o choro vinha irreprimível, como uma golfada de vômito. A senhora ao meu lado, lenço desbotado cobrindo o pixaim grisalho, bolsas marcadas sob os olhos, a certa altura abriu o guardanapo com seu lanche, um pão com margarina e uma banana, e dividiu comigo. Aceitei cheia de vergonha e imensamente agradecida. Chorar dá fome, a viagem era longa, e eu não tinha um centavo.


Marilia Mota Silva
Washington, 10/12/2014

 

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