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Segunda-feira, 22/12/2014
A Dama Dourada, de Anne-Marie O'Connor
Ricardo de Mattos


Gustav Klimt

"Venham todos assistir o estúpido Iermolai Lopakhine levantar seu machado no meio do jardim e botar no chão todas essas cerejeiras"! (Anton Tchekhov).

Viktor Frankl utiliza o termo "vivência" com o significado muito específico de experiência íntima. Não qualquer experiência cotidiana que se perca no turbilhão da existência, mas aquela que move profundas cordas na alma e torna o momento, para continuar usando suas palavras, irrepetível.

Frankl entendeu que os seres humanos são atraídos pelo Sentido e impulsionados pelos valores. E esses valores podem ser divididos em três classes - valores de criação, vivenciais e de atitude - recomendando que o indivíduo transite entre eles no decorrer de sua finitude material. Valores vivenciais seriam aqueles que levariam ao sentido não por meio do fazer, ou da iniciativa, mas por meio do receber, do captar o Sentido naquilo que nos oferecem a Natureza e a Arte. O fundador da Logoterapia sugeriu que si perguntássemos sobre o sentido da existência a alguém sinceramente extasiado por uma bela sinfonia, ou diante de uma impactante paisagem natural, dificilmente teríamos uma evasiva ou uma resposta negativa.

O laboratório de comprovação empírica das teses franklianas foi o campo de concentração. Um dos capítulos de sua obra mais divulgada - Em busca de sentido - um psicólogo no campo de concentração fala sobre a vida de prisioneiros habituados a uma vida intelectual e culturalmente ativa. Primeiro temos que lembrar que, para Frankl, o passado é o guardião por excelência de tudo o que alguém viveu ou vivenciou. Aquilo que a pessoa construiu, realizou e amou encontra-se de tal forma preservado pelo passado que se torna impossível tirar dela. Decorre daí que a memória intelectual e cultural - numa palavra, espiritual - era o refúgio de muitos dos prisioneiros dos campos, detentores de tesouros que as traças não podiam roer nem os ladrões levar. De Frankl, inclusive, que nos momentos mais difíceis recolhia-se em diálogos imaginários com sua amada esposa Tilly ou proferia palestras imaginárias sobre temas médicos e ensaios de sua Psicologia do Sentido.

Talvez a informação de que nas metrópoles da morte havia arremedos de música e de teatro não seja a mais difundida. Por precários que fossem, serviam de vetor para despertar lembranças da plateia, mergulhá-la no passado recente e devolvê-la fortalecida para o presente. Como Fritz Altmann, que se recordava de levantar antes do amanhecer para garantir os ingressos para a ópera La Bohème, encenada num teatro de Viena. O exemplo de Fritz não foi extraído de algum livro de Frankl, mas do ótimo trabalho da jornalista norte-americana Anne-Marie O'Connor, intitulado A dama dourada - Retrato de Adele Bloch-Bauer. Na esteira de livros como A lebre com olhos de âmbar, de Edmund de Waal, e Lady Almina e a verdadeira Downton Abbey, da Condessa de Carnavon, o tema do livro é a descrição de uma época na qual surgiu determinada obra, seguida da narrativa dos acontecimentos sequenciais, nos quais estiveram envolvidos não apenas a obra eleita mas as pessoas com ela relacionadas. Enquanto o livro de Waal revela sua nostalgia e admiração pelos antepassados e o de Carnavon denuncia sua empolgação, o livro de O'Connor segue um roteiro que poderíamos assim resumir: deslumbramento, atrocidade e denúncia.

O deslumbramento está presente na primeira parte e longo trecho da segunda. A sociedade vienense do século XIX e do começo do século XX estava dividida em dois círculos. O primeiro, o da nobreza tradicional ligada à monarquia dos Habsburgos. O segundo, da alta burguesia de origem judaica, titulada ou não. Si inicialmente este círculo pôde ter sido chamado de "segunda sociedade" de modo depreciativo, tornou-se o fragmento social onde se reuniu e desenvolveu o melhor da inteligência da época. São presentes nomes como Sigmund Freud, Gustav Mahler, Oskar Kokoschka, Arthur Schnitzler, Walter Gropius, Karl Kraus, Arnold Schoenberg e a família Strauss. Predomina a figura do pintor Gustav Klimt, criador de obras inspiradas tanto no impressionismo quanto nos ícones ortodoxos, diversas das quais poderiam garantir-lhe, isoladamente, o reconhecimento posterior. Entre estas, o retrato de Adele Bloch-Bauer, membro de destaque do segundo círculo, casada com o empresário Ferdinand Bloch-Bauer e supostamente envolvida com Klimt. O comportamento do pintor permitiu que se conjecturasse de seu envolvimento sexual com quase todas suas modelos, mas não é com isto que O'Connor preocupou-se. Ao contrário: há tanto material que imaginamos a dificuldade de edição.


Adele Bloch-Bauer
A "Dama Dourada"

Lemos recentemente uma biografia do pintor holandês Vincent Van Gogh e prestamos atenção no empenho e dedicação que caracterizaram sua transtornada vida muito mais que a excentricidade de seu comportamento. Este empenho e esta dedicação de um pintor, que para o leitor ainda situavam-se num plano abstrato e eram extraídos da correspondência entre os irmãos Van Gogh, adquiriu materialidade quando Klimt entrou em cena. Caso O'Connor esteja correta, após a segunda guerra mundial um general norte-americano pretendia levar para os Estados Unidos cerca de 175.000 (!) desenhos de Klimt. Nosso pasmo talvez advenha da pouca atenção dada a este tipo de contabilidade, mas que um número assim impressiona, disto não se tenha dúvida.

Intercalando-se com a fase do deslumbramento e dominando a segunda parte do livro, há a descrição das atrocidades. O'Connor narra o ocorrido com a maioria das pessoas apresentadas anteriormente. Klimt e Adele não testemunharam os horrores da segunda guerra, visto terem desencarnado, respectivamente, nos anos de 1918 e 1925. O texto não se diferencia dos diversos relatos sobre as provações sofridas pelo povo judeu. Surpreende-nos a fértil imaginação para o mal, pois se os relatos são inúmeros, sempre há novidades no que se refere a torturas e causas de sofrimento. No primeiro terço do livro, um cabo da primeira guerra e pintor incompetente chamado Adolf Hitler assemelha-se ao horror num conto de Lovecraft, muita vez mais sugerido que presente. Na segunda parte, tal como Cthulhu, ele emerge do sepulcro e consolida o ódio por meio de seus sacerdotes. Nesta ocasião é que o quadro de Klimt deixa de ser nomeado Retrato de Adele Bloch-Bauer e passa a ser mencionado como A dama dourada. Era mais uma das inúmeras táticas de privar os judeus de sua vida, de seus bens e, si possível, de sua memória, de sua própria identidade.

Como é próprio do totalitarismo, toda atividade, por mais torpe que seja, é amparada numa justificativa que satisfaz a rasa racionalidade da maioria e confirma a suspeita de seus autores de que não serão questionados. Poderia alegar-se o que se quisesse a respeito da frustração artística do "Führer": para todos os efeitos ele estava promovendo a higienização do Reich ao eliminar não apenas os autores da decadência do povo germânico como também sua bagagem artística "degenerada". Nem Bambi, obra literária destinada ao público infantil, escrita por Felix Salten escapou. Que esperar quando pessoas sentem-se ameaçadas pelo Bambi? Parte do espólio artístico foi realmente queimada para satisfazer o grupo da racionalidade rasa. Porém, que dizer das obras que foram parar diretamente nas galerias de Hitler e das de seus subordinados, ou que foram vendidas para financiar seu projeto sanguinolento? Sendo "degenerada", por que selecionou algumas para si? Eram "degeneradas", mas boas o suficiente para sustentar os planos de domínio.

A terceira parte do livro, enfim, revela que final de guerra não significa, necessariamente, final das provações. Um dia pessoas tiveram suas casas invadidas e viram levadas obras diversas, muitas delas reunidas com gosto de colecionador. Ou viram retratos de seus entes queridos avaliados em moeda corrente e encaixotados. Anos depois, os sobreviventes precisaram provar que realmente eram proprietários daquelas casas das quais foram expulsos, ou que de fato eram donos de tal ou qual objeto. Distantes no tempo e no espaço, pode parecer frívolo alguém mencionar o roubo do violoncelo Stradivarius do cunhado de Adele Bloch-Bauer. Os relatos do livro, entretanto, mostram que o dono daquele instrumento não apenas adquiriu-o sabendo do que se tratava, como também, nas festividades domésticas, sabia dar-lhe vida. Portanto, o violoncelo que era um objeto portador de um significado espiritual para seu dono, passou a ser apenas uma cifra na mão de agentes do Reich, caso um deles não fosse um apreciador de música com algum conhecimento a mais. Não à toa escolhemos para epígrafe desta coluna um trecho da peça O jardim das cerejeiras, de Anton Tchekhov.

Caro leitor: pensa nos seus objetos mais queridos, sejam de significativo valor econômico, sejam de valor sentimental. Você tem prova da propriedade de todos eles? Há como provar que foi para você que Cauby Peixoto autografou aquele guardanapo de papel? Fossem tomados hoje, haveria como reivindicá-los mediante prova segura? Seus netos saberão apreciar aquela paisagem antiga na parede da sala, embasada mais em lendas familiares que em documentos concretos? Ou verão nela apenas a fonte de dinheiro emergencial? Este ponto específico, quando nem os descendentes dos espoliados dão a mesma valoração ao patrimônio recuperado, vendo nele uma fonte inesperada de renda, também é mencionado por O'Connor. Segundo a autora, em alguns casos a resistência da Áustria em devolver obras de arte foi vencida, porém a consequência foi a venda das obras pelos herdeiros tão logo nelas colocassem as mãos. "Sendo deles as obras, poderiam fazer delas o que quisessem", pode alegar aquele representante do raciocínio raso que se levantou vestindo uma camiseta branca com uma estrela vermelha. Quão degenerados estaremos quando nosso orgulho não recair na compreensão alcançada de uma obra do espírito humano, e sim na quantia desembolsada para adquiri-la. Caso tudo possa ser resumido em dinheiro, o que sobrará para o espírito?


Nesse sentido

"O nome dele era Herbert. Acho que ele não sarou, e se tiver sarado terá acabado onde acabaram muitos outros na Metrópole da Morte. Uma das nossas distrações, embora principalmente dele, era me explicar, ou me transmitir, alguma coisa das riquezas culturais que ele havia acumulado, como se estivesse me deixando aquela herança. A primeira coisa que ganhei dele foi um livro, o único livro que ele possuía, e que eu leria. Começava com a descrição de uma velha e de um moço que a golpeia com um machado, que assassina e é atormentado: Crime e castigo, de Dostoievski. Foi isso que ele levou para Auschwitz, e essa foi a primeira grande obra literária que li desde que fui apartado da biblioteca dos meus pais na Tchecoslováquia, aos nove anos. Não parou em Dostoievski. Fomos para Shakespeare e Beethoven e Mozart e tudo da cultura europeia que ele conseguiu despejar em mim. E eu absorvi um bocado" (Paisagens da Metrópole da Morte, de Otto Dov Kulka, página 44).

Ricardo de Mattos
Taubaté, 22/12/2014

 

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