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Sexta-feira, 9/1/2015
Por um 2015 sem carteiradas
Marta Barcellos

O Brasil de 2014 foi marcado por fortes emoções na política e no futebol, mas, em minha retrospectiva pessoal, nada aparece como mais sintomático do país que somos do que a carteirada do juiz que se julgava deus. A história foi divulgada no início de novembro, quando ainda estávamos atordoados com as emoções da Copa e das eleições: o juiz João Carlos de Souza Corrêa mandara prender, numa blitz da Lei Seca, uma agente de trânsito que ousou lembrá-lo da natureza não divina de seus poderes. Diante da carteirada, ela observou: é juiz mas não é deus.

A partir daí, todos conseguimos facilmente imaginar o juiz enfurecido, primeiro em sua ira bêbada, depois em sua vingança calculada (no processo judicial em que conseguiu penalizar a funcionária com uma multa). Tudo para provar que tem, sim, e pode usufruir dos poderes que acredita lhe terem sido outorgados (por deus?), ou ter conquistado (por mérito?).

A piada pronta da carteirada divina serviu para que outras semelhantes passassem a ser denunciadas. Isso mesmo, 'semelhantes', apesar de todo o estardalhaço da primeira delas na mídia. Apenas um mês depois, outro juiz deu ordem de prisão a três funcionários da TAM que o impediram de entrar atrasado em um voo, cujos procedimentos de embarque haviam sido encerrados. E, como se um exemplo negativo inspirasse o outro, no antepenúltimo dia do ano um tenente da Aeronáutica também resolveu dar voz de prisão a um funcionário da mesma companhia aérea, pelo mesmo motivo de não ter conseguido atrasar o voo para que tivesse o privilégio de embarcar com a família.

(Aqui uma pergunta-parênteses se impõe: o quanto as "autoridades" estão acostumadas a embarcar atrasadas em aeronaves, depois de devidamente identificadas?)

O lado positivo disso tudo é a percepção de que deixamos de nos intimidar tanto com as carteiradas, provavelmente porque confiamos mais nas instituições que zelam pelo velho preceito da igualdade entre nós. Vale lembrar, o "sabe com quem está falando" é tão antigo quanto o Brasil, usado sem cerimônia pelos bem nascidos da elite, cujos privilégios se estabeleciam desde a origem. Quando confundidos com o "resto", uma situação em si só constrangedora para eles, não hesitavam em apresentar suas credenciais, em geral o nome de família.

O que me intriga é que as carteiradas agora envolvam também alguma dose de "mérito". Explico. Os estudantes que conseguem entrar nas melhores faculdades de direito em geral são oriundos de famílias mais abastadas, porém não basta isso para se tornar juiz: é preciso um conhecimento excepcional, muita dedicação e uma inteligência acima de média para chegar aos primeiros lugares dos concursos públicos. Ou seja, não basta ser filhinho de papai. É preciso mérito para vencer uma disputa acirrada e sem direito a carteiradas - pelo menos durante o processo.

Mas eis que um dia, depois desta competição feroz na qual provou sua superioridade sobre tantos que sucumbiram pelo caminho, aqueles que não passaram pelo funil do mérito, eis que um dia este estudante "chega lá". Ele passou no vestibular para medicina na USP, o mais difícil do país; ele tirou o primeiro lugar no concurso público para iniciar uma brilhante carreira de juiz. Alcançando esta nova etapa - na qual, em muitos países, aí sim ele deveria sentir a responsabilidade de precisar provar à sociedade o seu valor -, lhe parece tudo conquistado. Ele "chegou lá", venceu, o futuro está garantido. Para completar, ele encontrará neste topo um ambiente de corporativismo, uma espécie de irmandade de vencedores que saberão se proteger do "resto", aqueles que não passaram pelo funil e não compreendem a natureza (quase divina) de um valor avalizado por dura competição (terrena).

Não se trata aqui de generalizar. A grande maioria dos juízes não dá carteirada, nem se julga acima do bem e do mal, assim como apenas uma minoria dos estudantes de medicina da USP esteve envolvida em episódios de estupros e acobertamentos. O que proponho aqui, neste raciocínio, é apenas questionar a eficácia de processos de seleção nos quais dificilmente se conseguirá avaliar a simples capacidade de se colocar no lugar dos outros - algo tão, tão imprescindível em profissões com estas.

Uma pesquisa com executivos de empresas certa vez constatou que os mais altos postos de comando com frequência são ocupados por profissionais com algum grau de psicopatia. A explicação era relativamente simples: para "chegar lá", na presidência, por exemplo, quase sempre é necessária uma boa dose de insensibilidade em relação aos outros. Claro que um psicopata na presidência também representa um risco para as companhias, que passaram a ficar mais atentas a outras características (não tão "vencedoras" e mais "humanas") entre os executivos que pretendem promover.

Pode ser utopia, mas, nestes tempos de aquecimento global, em que as ameaças pairam sobre uma coletividade, está mais do que na hora de valorizarmos outros tipos de competências/inteligências em nossas lideranças, e também nos postos chaves da nossa sociedade. A competição e o individualismo podem ter mostrado sua eficiência no sistema capitalista, mas as novas gerações começam a perceber os riscos dessa fórmula, e a limitação que ela impõe para o futuro. Um futuro que será, sempre, coletivo.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 9/1/2015

 

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