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Terça-feira, 24/2/2015
Daumier, um caricaturista contra o poder
Jardel Dias Cavalcanti

Dedicado ao Charlie Hebdo

"Os vencidos são cinzas, o destino sopra-os e os dispersa. Produziu-se sinistro desaparecimento de todos os combatentes do direito e da lei. Trágica desaparição". (Victor Hugo - História de um crime)



Honoré Daumier foi desenhista, litógrafo, pintor e escultor. Iniciou sua carreira artística como caricaturista no ano de 1830, no jornal La Silhouette. Colaborou depois para o jornal Caricature, fundado por Charles Philippon em 1831. Depois que o jornal foi fechado, Daumier voltou-se para a pintura. Em 1848, retomou sua atividade como caricaturista no jornal Le Charivari.

Daumier tornou-se o maior caricaturista cronista dos crimes cometidos contra a população francesa em todos os níveis de sua vida social. É o que o vasto conjunto de sua obra exibe de forma imperativa.

Baudelaire elogia Daumier por sua representação integral da realidade moderna: "folheiem sua obra e verão desfilar ante seus olhos, em sua realidade fantástica e impressionante, tudo o que uma cidade tem de monstruosidades vivas. Tudo o que ela encerra de tesouros assustadores, sinistros e burlescos, Daumier conhece."

Daumier foi caricaturista político e, enquanto colaborou nos periódicos Caricature e Charivari, sempre esteve pronto a atacar a política hipócrita de Luís Filipe e o corrupto sistema judiciário, legislativo e burocrático do Estado Francês.

Em uma de suas caricaturas, denominada "Gargântua" (1831), Luís Filipe é retratado como um Gargântua a quem o povo francês lança goela abaixo os frutos de seu trabalho, sem, contudo, conseguir saciá-lo. Nessa caricatura, pode-se ver os ministros de Luís Filipe acumulando em cestos os impostos pagos pelo povo, para os esvaziarem em seguida na bocarra insaciável de Gargântua, cuja fisionomia é a do monarca. Por baixo da poltrona, distribuem-se privilégios e monopólios a homens de negócios, cujos interesses eram defendidos pelos ministros do rei. Esta sátira era demasiado dura para passar despercebida. Essa caricatura valeu a Daumier meio ano de prisão.

"Gargântua" se encontrava de forma inacreditável com o texto de Marx, "A luta de classe na frança de 1848 a 1850", que parecia traduzir a caricatura de Daumier: "A monarquia de julho não passava de uma grande sociedade por ações para a exploração da riqueza nacional da França, cujos dividendos se repartiam entre os ministros, as câmaras e seu séquito. Luís Filipe era o diretor dessa sociedade...".

Na caricatura "Repouso da França"(1834), o soberano, metido num traje bem apertado, cartola, sobretudo preto e guarda-chuva no braço esquerdo, quase escorrega do imponente trono em que adormeceu, evidentemente esgotado pelos muito assassinatos cometidos. Entre suas pernas vê-se um canhão com a boca virada para o observador; dois outros destacam-se sobre o trono, nas laterais. À esquerda, atrás do trono, o galo gaulês com o pescoço torcido; à direita, Marianne, com o barrete frígio à cabeça, tem os olhos voltados para as algemas que lhe prendem o pulso.

Também a verve crítica e satírica de Daumier aparece nas litografias e nas pinturas inspiradas em cenas de tribunais, onde o artista disseca o poder judiciário, ilustrando, entre várias coisas, as defesas apaixonadas de advogados e clientes pouco decentes. Ele nos mostra os magistrados sob um aspecto nada favorável dando-nos os traços essenciais do seu caráter com uma arte muito segura e cirúrgica.

No "Journal" dos Goncourt, de 13 de março de 1865, aparece o seguinte comentário a respeito da série de Daumier sobre os advogados e juízes: "Os homens de justiça! Jamais, desde Rabelais, os trapaceiros haviam sido comprimidos de perto, mais pesquisados, mais implacavelmente dissecados nos seus truques, nas suas manias, nas suas audácias, nas suas dissimulações. Essas roupas negras, essas faces barbeadas, o frio úmido das salas de audiência, tudo isso tem positivamente embriagado Daumier."

Sua obra vê os primeiros anos do orleanismo como macabramente grotescos e Luís Filipe como principal personagem do espetáculo reacionário que se desenrola no palco da França: papa-defunto, Gargântua insaciavelmente glutão, sempre urdindo intrigas, incitando ao assassinato, extorquindo a nação e, depois, exausto da festança que lhe propiciam os assassinatos, imerso num profundo sono digestivo.

Em "Enforcando Lafayette! Trapaça, meu velho!"(1834) emerge o obeso Luís Filipe que exulta com a morte de Lafayette e com o fim da revolução. Todo de preto, na figura de um Luís Filipe defunteiro, como dissimulador e hipócrita, encontra-se afastado do cortejo fúnebre na esplanada do cemitério e oculta atrás das mãos juntas o rosto, no qual se espelha a satisfação com a morte do inoportuno herói da liberdade.

Em todas as obras de Daumier relacionadas à questão da violência do Estado contra o cidadão, encontramos pormenorizados os detalhes que tornam visível essa violência; seja nos cadáveres da Rua Transnonain, seja no desespero dos fugitivos, seja no trabalho pesado da população pobre, seja no sarcasmo estampado no rosto dos poderosos.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 24/2/2015

 

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