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Quinta-feira, 16/4/2015
Solitária cidadã do mundo
Elisa Andrade Buzzo

São dois quarteirões, lisos e retos, onde a vida roda no vaivém do comércio. Um dia, uma esquina desse plano fechou, e o povo, curioso como é, ficou aguardando o que dela seria feito. Do fundo daquela casa, quando se abriram as portas, emergiu um cheiro de sujeira velha, madeira meio apodrecida. Estava prometido que ali, esquina privilegiada da vida cotidiana, algo seria feito. E então, tudo começou a ser quebrado lá dentro, o espaço sendo limpo, refeito e moldado para novos usos comerciais.

Aos poucos se viam as pistas mais imediatas do estabelecimento. Piso duro de mármore cinza, corredores repletos de prateleiras, luz branca e intensa. Na madrugada, caminhões desembarcavam maquinário, grandes esteiras rolantes cinzas e limpas. Em algum momento sutilmente a mercadoria veio adentro. O acabamento da fachada com pastilhas vermelhas foi feito, e o batismo do lugar amanheceu grudado num grande símbolo da marca do supermercado.

Assim, sem mais nem menos, acabei me vendo lá dentro no dia da inauguração. Havia uma caixa de som na rua, e um promotor de vendas anunciava as ofertas. Que novo mundo de produtos era aquele que se abria num repente, as pessoas todas em polvorosa diante da grande novidade, as ofertas, as prateleiras recheadas de coisas baratas e gostosas. Senti-me dentro de algo ainda tenro, fresco, cuja sujidade começava a se incutir, lentamente, a partir dos primeiros pisões.

E irmanados pela necessidade de abastecimento, os habitantes do bairro ali se reconheciam - entre prateleiras, comentando os preços, admirados com o tal mundo novo de produtos. Era como se pela primeira vez pisasse numa venda e se sentisse a modernidade em forma de produtos industrializados, em embalagens ora chamativas, ora delicadas. Nossos olhos tinham um brilho infantil, e isso, tal abertura de possibilidades inéditas, era algo de uma beleza irrisória, efêmera.

Aos borbotões, a afluência das compras continuava por dias numa ilusão de economia, vertendo litros de detergente vermelho para uma sujeira na louça que ainda nem existia. Com que curiosidade se examinaram as mercadorias ainda bem alinhadas, bolinhos, potes de plástico vário, a pequena seção de higiene pessoal com embalagens de temas florais. E o desejo grosseiro de tudo possuir num bip ia arrefecendo, e a imagem de que as coisas fossem melhores, recobertas de uma camada insuspeita de bondade se apagava num lento esforço da visão.

Agora ando pelos corredores perscrutando aquele mundo novo, uma porta que se entreabre. E, de tão recente, parece ser algo melhor, cintilante, quase irreal. Aguardo o movimento aquiescer e o anoitecer, para então, solitária cidadã do mundo, procurar por saladas e sanduíches saudáveis.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 16/4/2015

 

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