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Quarta-feira, 13/2/2002
Dois Idiotas
Paulo Polzonoff Jr

O primeiro idiota, nomeá-lo-ei com mesóclise e tudo: Jairo B. Pereira. Fosse eu um homem inteligente, simplesmente ignoraria o distinto. Não sou. Falo para que saibam com que tipo de gente lida-se na labuta pela garimpagem de uma literatura decente. Isso porque se fala muito que críticos ou resenhistas (chegamos a um acordo naquele café: as duas palavras são horríveis) não passam ou de ressentidos ou de frustrados. Ah, profissão insalubre: cuidar de idiotas sem poder nem ao menos usar de camisa-de-força, eletrochoques ou qualquer destes bons tratamentos da psiquiatria medieval.

O cavalheiro de que falo, que quero expor aqui ao ridículo (quando é que acabaram com a boa mania de apedrejar pessoas em público?), é um Escritor Paranaense. Para entender esta verdadeira instituição, o Escritor Paranaense, eu aconselho ao leitor descuidado que leia meu texto (nada de modéstia, por favor) Da Decepção Diante do Escritor. Lá eu mostro como é inteligente este ser, personificado na figura de Domingos Pellegrini. Aqui, aliás, vale comunicar algo que me aconteceu neste mês de janeiro, envolvendo o dito e o referido texto, publicado em jornal. Pellegrini juntou-se a um “artista plástico”, chamado Hélio Leites, cria deste poeteco de bar chamado Paulo Leminski, e os dois, em conluio, mandaram uma carta para o dono do jornal em que trabalho, para me intimidar. Coisa muito fina, muito distinta, de gente de “crasse”, gente que vive das letras e dos sorrisos de admiração das dondocas entusiasmadas com o mito do “ artista popular” (obrigado, senhor Ariano Suassuna, por ter criado esta aberração em nossa cultura). Claro que a carta não surtiu efeito e, como troco, gastei três páginas inteiras de jornal numa tréplica furiosa. Como diria minha santíssima avó: não sou pouca bosta.

Voltemos, porém, a este Jairo B. Pereira. Escritor, como já se disse, de Foz do Iguaçu, no sertão do Paraná. Lá estive ao menos uma dezena de vezes, algumas para ver as famosas Cataratas do Iguaçu, que confesso adorar (aquele monte de água caindo com força sobre as pedras, produzindo aquele som infernal, evoca-me a imagem de um Deus vingativo e austero), outras para fazer umas comprinhas no Paraguai. A cidade, em si, nada tem de mais. Hotéis e restaurantes (onde se toca a Galopeeeeeeeeeeeeeeeeeeira) e prostíbulos compõem a cena cultural de Foz do Iguaçu. É aí que floresce a pena talentosíssima de Jairo B. Pereira.

O fato é que, hoje em dia, para o cara ser um escritor, basta que ele tenha cara-de-pau o suficiente para se sentar num computador e escrever o que quer que seja. Foi o que fez num belo dia o senhor Jairo B. Pereira, sob influência, creio, do sol forte que bate na moleira do caboclo por aqueles lados do País. Escreveu ele um calhamaço intitulado O Abduzido, publicado por uma tal de Editora Blocos. Enviou-me o volume, com dedicatória e tudo, e esperou que eu o consagrasse. Não sou tolo, contudo, e, tendo de escrever sobre o livro (há coisas que eu preferia simplesmente ignorar, mas a profissão me impede), fui sincero. Pecado mortal, na imprensa cultural brasileira.

Faz mais de seis meses que isso aconteceu.

Agora sou surpreendido com um e-mail do Joyce das araucárias (esqueci: não existe araucárias naqueles rincões lá onde ele mora), chamando-me “tolinho de Capitópolis” (tenho de concordar: eis aí uma boa alcunha). O insulto, no entanto, não é o motivo real deste texto estar sendo escrito, e sim a megalomania do Escritor, que me pareceu típica de uma espécie de gente que almeja a imortalidade pelo seu viés mais complicado: o da burrice explícita. O texto se intitula Do Porquê Ser eu Mesmo (Jairo Pereira) ou Ensaio da Sã Compostura no Tolinho de Capitópolis. Eis o primeiro trecho que vale a pena citar aqui, para que o leitor entenda como funciona a intrincada mente do Escritor:

(...) um tolinho de Capitópolis daqueles que vivem trancados (congelados) dentro de apartamento gozou numa coluna literojornalesca que eu queria ser James Joyce mas era tão-somente Jairo Pereira o tolinho quando leu cheirou minha megaobra O abduzido o fez mal e porcamente não-acostumado com literatura que revoluciona as formas e os conteúdos inventou de me espinafrar só pra não deixar por menos digo que meu livro é aberto aos espíritos e nem sempre os espíritos jogam o bom pingue-pongue inauguro a literatura insensata que ataca na raiz do mau pensamento que está no outro e sofro agressões de toda sorte (...)

Perceberam? O cara é um revolucionário das formas e dos conteúdos (!!), que produziu uma megaobra que eu, o tolinho de Capitópolis, não pude compreender, ignorante que sou. Aliás, convém dizer aqui que acho James Joyce dispensável, depois de atravessar todo o Ulysses. Não que considere um mau livro. Simplesmente não o considero essencial para quem quiser compreender a literatura no século 20. Valor histórico? Desconfio. É provável que o Ulysses vire um daqueles livros citados, apenas, como são as obras dos concretos (quero crer que ninguém em sã consciência lê os concretos) e da poesia práxis.

O Escritor. Quando é que nasceu este ser ungido em toda sua capacidade de ser e de compreender o ser? O Escritor. Cercado por mitos, seus e dos outros, vivendo acuados por eles, respirando, arfando suas historinhas crendo que elas são únicas e indispensáveis. Aqui, em Capitópolis, em São Paulo, Nova York, Délhi. E até em Foz do Iguaçu.

(...) minha premissa maior ser sou o máximo muito melhor que James Joyce Guimarães Rosa Jorge Luiz Borges Garcia Marques Cortázar... porque sou diferenciado no DNA do talento da emoção da inspiração criadora do tempo e do espaço do olhar semiótico e do fazer protonathural que me é peculiar (...)

Pois é...Que tal? Acompanham meu raciocínio? Ele é melhor, simplesmente melhor. Adiante, escreve sua profissão-de-fé:

(...) Escrever para os idiotas escrever para os professores escrever para os jornalistas escrever para os estudantes escrever para os poetas e escritores escrever por escrever e escrever e escrever essa a minha inútil serventia corporificada na palavra que dou no favo protonathural aos tolos tolinho de Capitópolis és o mais reles dos insethos línfhitos encasulado nos folículos incestuosos nefertículos da cauda entrando no cê-u do animal o próprio rabhudo transfirmortente que te geraste uma pobre mãe não pode ser responsabilizada pela infeliz criatura que deu ao mundo protocriou uma pobre mãe sonhou possibilitou seu rebento expandido no espaço da urbe Capitópolis não te merece ou te nefertículo semidifurdiado tolinho de gerações gerafúrnidas de grotas entrusbíscidas uma mãe... pobre mãe sempre suspira pelo infinito.(...)

Não escutava um insulto à minha mãe desde que perdi um gol numa pelada no recreio da quarta-série (fato traumático que vai virar texto, algum dia). E termina seu texto com uma sucessão de símbolos — que, por sinal, pontuam todo o romance O Abduzido —, que culminam com a declaração:

sobre a rede do meu singularíssimo talento.

Pessoas de singularíssimo talento como o de Jairo B. Pereira existem aos montes por aí. Em qualquer esquina de grande cidade, por exemplo, é possível ver pintores geniais e suas marinas ou naturezas-mortas recém-saídas de cursos de verão. Poetas malucos-beleza também sobem em estátuas equestres e de lá recitam seus versos ali inventados na hora, brancos e inócuos. Artistas plásticos fazem perfomances em museus de arte contemporânea. Semiotas (mistura óbvia: semiólogos e idiotas) explicam a genialidade do nada. Cineastas juntam dois frames num super-ultra-curta-metragem revolucionária sobre a vida de (quem?) Che Guevara.

Le État des Choses: perdido, entre si e si-mesmo. Com o Sol impiedosos na moleira. Ou sob a influência de tetra-hidro-canabinol. Whatever.

P.S.: Para quem não entendeu, explicito aqui que o segundo idiota desta história sou eu, que gastei meu precioso tempo (e o de vocês, perdoem-me) escrevendo sobre este idiota. É que às vezes simplesmente não dá para ficar quieto.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 13/2/2002

 

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