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Terça-feira, 17/11/2015
O ato de criação no texto dos artistas (Parte I)
Jardel Dias Cavalcanti


Quem não desejou um dia penetrar na intimidade do criador? Do pintor em seu ateliê, do escritor em sua mesa, do músico com sua partitura? Quem não sonhou em compreender o que estimula o gesto e o pensamento, e captar o instante em que algo acontece inopinadamente no momento da criação de uma obra de arte? Qual é o segredo da gestação de uma obra? Desvendar o processo revelaria esse segredo?

Existe uma vasta documentação sobre o processo de criação e seus mistérios deixada pelos agentes da criação: os próprios artistas. São textos de diferentes naturezas: cartas, diários, poemas, ensaios, entrevistas, diários, memórias etc. Esta documentação, felizmente, abrange todos os gêneros da criação, das artes plásticas à música, literatura, cinema, arquitetura e teatro. Essa abrangência de diferenças possibilita o cruzamento de ideias, ampliando assim a possibilidade de se aventurar dentro da oficina do artista, acompanhando as dúvidas e certezas que envolvem o ato de criação.

Podemos nos perguntar: o que leva o artista a não só simplesmente fazer a sua obra, mas começar a discutir os procedimentos da sua criação?

Paul Valéry nos apresenta o problema da arte como o problema do fazer: "Se pois me interrogam; se se inquietam acerca do que eu `quis dizer` em tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas quis fazer, e que foi a intensão de fazer que quis o que eu disse." (VALÉRY: 1984; 73). O que está em jogo aqui é que o artista não se pensa mais fora da operação poética. Há uma longa história para se chegar a este tipo de procedimento dentro da escrita dos artistas que, além de criarem a obra, a pensam como processo do fazer.

HISTÓRIA DOS TEXTOS

Os tratados e comentários sobre os problemas da criação artística sempre existiram, desde as ideias sobre imitação, cópia e simulacro, no capítulo X da República de Platão, à questão da poética em obras como a Arte Poética de Aristóteles e Horácio e Do sublime de Longino, Vitrúvio com Os dez livros da arquitetura, todos na antiguidade, aos tratados renascentistas como o Tratado de Pintura, de Leonardo da Vinci e o livro Da Pintura, de Leon Batista Alberti (que casa geometria e retórica como elementos primordiais da poética). Na Idade Média, temos o texto Rationale divinorum officiorum, de Guillaume Durand (século XIII), que com extrema precisão das explicações e descrições mostra a influência da liturgia cristã sobre a arte e, particularmente, sobre a iconografia. Do século XVI ao XVIII as academias de arte exerceram seu ofício criando regras bem específicas para a criação artística mobilizando artistas para configurarem nos seus tratados os elementos que definiriam a boa arte.

Dentre alguns destes autores de tratados, na sua maioria artistas, estão Albrecht Dürer (Tratado das proporções), Giovanni Paolo Lomazzo (Trattato dela Pittura), Frederico Zuccaro ("O desenho interno" na A ideia da pintura, escultura e arquitetura), Nicolas Poussin (Lettres et propos sur lŽart) e outros como Cennini, Rubens, André Félibien, Giovanni Pietro Bellori, Bernard Lamy, Roger de Piles, Jean-Baptiste Du Bos, Diderot, David, Ingres etc.

Esses tratados buscavam formas de se disciplinar a atividade criadora e encontrar explicações racionais para a natureza do funcionamento da obra de arte, transformando-se em leis rígidas e permanentes, ou se se quiser, em regras para a arte. Como avaliou o poeta Paul Valéry, em seu ensaio Primeira lição do curso de poética: "raciocinou-se e o rigor da regra se fez. Ela exprimiu-se em fórmulas precisas; a crítica armou-se (...)".

Desde o romantismo, no entanto, a afirmação da individualidade da obra de arte, ou seja, o seu aspecto absolutamente autoral (subjetivo e pessoal) em oposição às regras apriorísticas dos cânones tradicionais, foi se afirmando e criando a necessidade de expor as escolhas particulares que determinaram os elementos constituintes de uma obra. É aí que nascem as primeiras descrições sobre o processo de criação de uma obra a partir das observações pessoais dos seus próprios criadores. O Journal de Delacroix é um exemplo disso. O que nascia também era a ideia de uma autoconsciência da arte como capacidade de refletir sobre si mesma. Os próprios elementos geradores da obra, seu processo, ganhava lugar no debate sobre o significado da obra de arte. E os escritos dos artistas ganharam outro sentido, não mais apenas de empreender um modelo de criação, mas de investigar o próprio processo gerador de suas obras. O que acontece é que: ao deslocar a percepção da obra de arte para as fronteiras da individualidade, os românticos acabam por desautomatizar essa visão de uma natureza objetiva, imutável, que se reflete na própria criação estética".

Há uma categoria de artistas escritores do romantismo, que são os poetas-teóricos, ou críticos, ou teórico-criadores: Schiller, Novalis, os irmãos Schlegel, Schelling, que apostam na ideia de que o artista genial é quem melhor realiza o absoluto que traz em si e melhor comunica-o aos outros. Para esses pensadores, o que a filosofia revela abstratamente a arte realiza, tornando concreta a filosofia. A arte seria o idealismo concretizado. A reflexão sobre a arte, nesse sentido, é a que busca encontrar na obra de arte a própria essencialidade do Ser.

Já em outra vertente, a partir do Romantismo, existem aqueles artistas que escrevem sobre a criação artística a partir de suas características peculiares, as influências, o modo de se operar dentro da prática e da subjetividade do ato de criação.

Para citar apenas alguns desses documentos que achamos extremamente importantes dentro da produção de reflexões sobre o processo de criação feito pelo próprio artista, enumeramos os seguintes: Journal, de Eugène Delacroix; Correspondências, Paul Cézanne; Cartas a Théo, Van Gogh; Cartas exemplares, de Flaubert; Diários, de Paul Klee; Filosofia da Composição, de Edgar Allan Poe; Pós-escrito a O Nome da Rosa, de Umberto Eco; A gênese do Doutor Fausto, de Thomas Mann; Escritos e reflexões sobre Arte, de Henri Matisse; Ecrits, de Glenn Gould; Escritos de Artistas: anos 60/70, organizado por Glória Ferreira e Cecilia Contrim, que oferece um panorama bastante rico sobre os escritos sobre a arte no século XX.


Há também outra forma de reflexão sobre a arte e sobre seus processos que se encontra em análises ou descrições crítico-poéticas ou apenas poéticas feitas por artistas sobre a obra de seus pares. Para apenas citar alguns, estes escritos incluem ensaios (Richard Wagner sobre Beethoven, Baudelaire sobre Richard Wagner, Rilke sobre Cézanne e Rodin, Valéry sobre Degas e Leonardo da Vinci), poesias (de Michelângelo, Baudelaire, Rimbaud e Rilke) e reflexões sobre a arte dentro de obras literárias (A Obra, de Émile Zola).

Em suma, é enorme a produção de escritos de artistas e variada as modalidades de escrita, que vão de tratados a correspondências, diários, entrevistas, ensaios, memórias, manifestos etc.

Os escritos variam entre a reflexão sobre a experiência da criação e a interrogação teórica, buscando cada artista discutir problemas estéticos e técnicos relativos ao seu processo de criação, além de apresentar intuições sobre o significado e valor das obras de outros artistas.

Essa reflexão dos artistas pode também ser de natureza primariamente teórica, criando, em seguida, uma interdependência entre descrever e pensar a própria obra, gerando um campo complexo que envolve o processo da gênese da obra com elementos relativos à crítica, teoria e história da arte.

Na próxima parte do texto, apresentarei os caminhos da escrita dos artistas e suas especificidades dentro do quadro da produção de reflexão sobre a arte.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 17/11/2015

 

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