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Terça-feira, 22/12/2015
It's evolution, baby
Luís Fernando Amâncio

Novembro terminou com o frisson da Black Friday. Milhares de pessoas se acotovelaram em shoppings, sedentos por produtos em promoção. Outros tantos deixaram um pouco de lado seus hobbies prediletos, como trocar insultos na internet, para buscar pechinchas em sites de venda. O canto da sereia para o ser humano moderno é um anúncio de desconto. Mesmo que seja a metade do dobro.

Não há crise que segure a impulsão às compras com a proximidade do Natal. Se tiver panetone nas prateleiras, se o hit da Simone já está tocando nas lojas, então é preciso abrir a carteira. Nem que seja para digitar os números do cartão de crédito.

Mas chega a ser engraçado este novembro terminar com a frivolidade do consumo como a principal notícia. Porque, convenhamos, o mês foi, ele todo, um "Black November". Em 5 de novembro, houve o rompimento das barragens da Samarco, em Mariana (MG). Vidas, memórias, distritos e um rio foram engolidos pela lama tóxica dos dejetos da mineração. Uma tragédia ambiental provocada por negligência e irresponsabilidade dos que empreendem e controlam uma atividade predatória de alto risco.

Na semana seguinte, em Paris, um novo atentado terrorista ocorreu, o segundo neste ano na capital francesa. 129 mortos e centenas de feridos pela guerra da intolerância.

A mais recente turnê da banda Pearl Jam pelo Brasil aconteceu durante esse nebuloso mês. Os eventos trágicos foram abordados pelo grupo em seus concertos, em discursos e músicas. Fui ao show de Belo Horizonte, no Mineirão, e uma das canções dedicadas ao atentado de Paris foi "Imagine", de John Lennon. A música do ex-beatle é, talvez, o maior hino pela paz, com letra otimista, que emana o sonho de uma geração que realmente acreditou que poderia enfrentar armas com flores.

Em outro momento da apresentação em Belo Horizonte, após o vocalista Eddie Vedder discursar contra os responsáveis pela maior tragédia ambiental brasileira ("esperamos que eles sejam punidos, duramente punidos e cada vez mais punidos, para que nunca esqueçam o triste desastre causado por eles"), o grupo tocou "Do the Evolution". Esta música do Pearl Jam, lançada no disco Yeld, de 1998, é uma das críticas mais certeiras à "evolução humana". Com ironia, sua letra representa o discurso de um homem que se vangloria por "ser o primeiro mamífero a vestir calças" e "a fazer planos"; se orgulha de "destruir colinas" e "viver numa terra livre, onde se faz o que quer, embora irresponsavelmente"; e, o que serve para os atentados de Paris, afirma "poder matar, pois acredita em Deus". Convido-os a ler a letra na íntegra. A música ainda contou com um bom videoclipe animado por Todd McFarlane, o criador de Spawn.



Há uma grande diferença entre as duas canções. "Imagine", construída basicamente com piano e voz, é serena, quase monótona. Ela aponta para uma utopia: a de um mundo sem conflitos, países ou religiões, vivendo como um só. Já "Do the Evolution" é um rock clássico, com bons riffs, letra ácida e urros viscerais. Enquanto a primeira é esperançosa, a segunda é uma autocrítica que não dá margem para maiores ilusões sobre a humanidade.

Em novembro jorrou, junto com a lama poluída da Samarco e com o sangue dos inocentes na França, uma inevitável desesperança. O que nos faz concluir que, salvo toda a representatividade de "Imagine", parece indiscutível que "Do the Evolution" nos define melhor. Nossa paz de espírito é com a luxúria e a ganância. Nossos deuses, aparentemente, justificam a violência contra quem não crê nele - esteja sua Terra Santa em Jerusalém, Meca ou Miami.

Sobre "Imagine", bem... Mesmo no que deveria ser banal, como na corrida consumista da Black Friday, conseguimos implantar a barbárie - numa busca rápida no YouTube você encontrará compilações de pancadaria por promoções. Logo, sentimos muito, John Lennon, mas o mundo não está preparado para viver como um só.

Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte, 22/12/2015

 

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