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Quarta-feira, 9/3/2016
Ah!... A Neve
Marilia Mota Silva

Tão linda! Floquinhos brancos, mais leves que confete, caem do céu gentilmente, e tudo aos poucos se aquieta. Cores e ruidos, folhas secas em alegres revoadas, ruas e telhados, nada resiste à invasão sutil e persistente. Sinfonia em Branco. Silenciosa. Até latão de lixo ganha um ar compenetrado e nobre sob o manto macio e reluzente.

E como fica bem nas fotos! Nos cartões de natal, nos calendários da nossa infância! As casinhas de madeira em encostas brancas, cortininhas de renda, lareira acesa... nada mais romântico.



E quando a neve pára de cair, e o dia acorda azul, todos saem de casa, ansiosos por ar livre, cansados do recolhimento. É como um feriado inesperado, as escolas fecham, só funcionam os serviços indispensáveis. Os parques, as ruas onde rarissimos carros se arriscam, se enchem de risos, gorros, casacos coloridos, bonecos, anjos de neve.

Só um trabalho não pode ser adiado: é preciso tirar a neve dos degraus da escada, do caminho e da calçada em frente a sua casa. A neve pisada vira gelo e os escorregões se multiplicam, às vezes com consequências dolorosas.

Além disso, você pode ser multado se não limpar a calçada e processado se alguém se machucar na área que você deveria ter limpado.

É preciso desencavar o carro também. É trabalho pesado que dificilmente se faz em uma só jornada. Mesmo com os carros desencavados, todos adiam ao máximo o momento de sair de casa. Por bons motivos:

Primeiro: porque é perigoso.Os carros atolam na neve ou deslizam incontrolavelmente, causando acidentes. Os caminhões da prefeitura equipados para tirar a neve das ruas dão prioridade às rodovias. Depois limpam as artérias principais da cidade. As ruas transversais esperam dias, dependendo da fintensidade da nevasca.

Segundo: porque você trabalhou horas para remover a neve que bloqueava seu carro. Quando sair, outro motorista vai ocupar esse precioso espaço. Essa escassez de estacionamento quando neva muito é um problema sério.

Claro, quem pegou sua vaga está no seu direito. A rua é pública e o estacionamento também. Mas para quem suou a camisa, removendo uns duzentos quilos de neve, esse direito é moralmente discutível.

Assim, por esses dias, é comum se ver cadeiras, carrinho de bebê, isopor, na rua, mostrando que a vaga ali tem dono.

Um motorista escreveu e plastificou um texto longo, explicando que tinha gasto horas limpando sua vaga; que reconhecia o direito legal de outro motorista estacionar ali, mas apelava para seu melhor sentimento (better nature) para que não fizessem isso. Mas se fizessem, ele prometia jogar a neve toda de volta, bloqueando o veículo. Era um músico e tinha mesmo que ir ao estúdio. Quase foi linchado nas redes sociais.

Um outro foi mais sucinto e, talvez, mais eficaz. Pregou o aviso na árvore em frente a sua vaga: Se você estacionar na minha vaga, quebro suas "fuck" (expletivo versátil!) janelas. Tenha um bom dia!

Basta uma nevasca mais forte e nossa casquinha civilizada se esfacela.

Nós brasileiros somos fascinados com neve. É porque temos pouca experiência com a dita, no dia-a-dia. Mesmo quem viaja com frequência dificilmente viaja no inverno, já que é impossível caminhar pelas ruas, apreciando com vagar as cenas da cidade, com temperaturas sub-zero.

Mas, talvez porque eu esteja com o braço na tipóia depois de um tombo no gelo, quero dizer que essa é uma das "maravilhas" estrangeiras que não nos faz falta nenhuma. Temos sorte de não ter.

É linda, sim. Cria paisagens de sonho e induz ao recolhimento, à introspecção. Mas também é um transtorno. Melhor vê-la de longe: em filmes e fotografias.

Marilia Mota Silva
Washington, 9/3/2016

 

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