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Segunda-feira, 25/2/2002
Eu não pulei carnaval
Eduardo Carvalho

O inferno são os outros.” J. P. Sartre

Eu não pulei carnaval. Na verdade, até dei uns pulinhos acompanhando uma ou outra marchinha, mas me diverti mesmo sentado em um canto do baile tomando Kaiser quente e ouvindo forró e axé. Se no céu os anjos tocam Mozart e se toma vinho, eu estava no inferno – mas não abracei o diabo. Aliás, nem cheguei a conhecê-lo: ele devia estar muito ocupado com sua popozuda, de short apertado e cabelo oxigenado, rebolando no seu colo. Precisei contentar-me, então, com cenas não menos assustadoras: moleques brigando, malandrinhos sem camiseta, gordas com a pança de fora e menininhas vomitando. Um saco, se o seu conceito de diversão exige um mínimo de pureza estética. Mas eu sabia aonde estava indo. Apesar de sóbrio, consegui suportar os piores momentos me convencendo de que, daqui para frente, vou ser um bom garoto. Não quero ir para o inferno.

Não é preciso pular carnaval, portanto, para se divertir entre tanta alegria. Não pra mim. Para seguir o seu caminho, às vezes é mais fácil descobrir por onde não se quer ir. Eu não tinha dúvida de que o nível de vulgaridade entre as pessoas da minha idade já era baixíssimo – de vez em quando, assisto televisão: mas ainda fico impressionado com certos estilos que jovens decidem assumir. O problema, diferentemente do que supostos rebeldes acreditam, não é que eles se esforcem para serem aceitos socialmente: é o grupo social ao qual eles pretendem pertencer. O destino de um malhadão de dezoito anos com o corpo repleto de tatuagens e bermudão caído com a borda da cueca aparecendo será, quase invariavelmente, um velho burocrata, barrigudo e conformista. Beijar dez menininhas no carnaval não o livrará, de forma alguma, dos cornos que sua futura mulher lhe botará.

Ela que está, aliás, ali ao lado, completamente bêbada, lambendo o pescoço e se esfregando no suor do amigo do seu futuro marido. Sorte que eles ainda não se conhecem. A menina pode escapar do quinto e beijar o sexto, que está distribuindo lança pra moçada. Gosto não se discute – muito menos no escuro. Aos dezessete anos, sua barriguinha já está feia o suficiente para que, se ainda lhe restasse bom senso, ela não usasse aquele top. E ninguém quer ver os seus seios pequenos e tortos entre o seu ousado decote – ela podia reservar um mínimo de privacidade para, quando já estiverem caídos, descobri-los para o seu futuro marido.

Melhor pra mim, claro. Se eu me comportar como um bom menino e conseguir ir para o céu, provavelmente o sujeito que por acaso se esbarrar em mim lá se desculpará. No céus, eles devem andar de camiseta, o que me pouparia o trabalho de enxugar o suor no próximo, que passa vestido. Os anjinhos ainda devem cultivar o hábito diário de se tomar banho, o que evitaria o desagradável odor que emana de certas pessoas. De quebra, eles não tem pêlos nas costas nem usam regatas, não vomitam no chão, não brincam com espuminhas nem andam com o peito estufado. Cada anjinho também, dizem, tem uma personalidade diferente, o que evitaria a conversação repetitiva daqueles caras que se cumprimentam fazendo uma forcinha para exibir o bíceps trabalhado.

Seria uma severa injustiça, porém, afirmar que não há qualquer variedade entre a personalidade do pessoal que se espremia naquele ambiente carnavalesco. De vez em quando, as roupas variavam. Mas o que elas encobrem permanece o mesmo. A aparente segmentação da molecada em tribos não apenas revela uma insegurança natural da idade: ela facilita a homogeneização entre suas idéias. Tem um pessoal fantasiado de surfista, uma turma se esforçando para ser moderninha, e uma galera ainda que se assume ser a dos peraltas do bairro. É de uma traquinagem infantil que, depois dos 16 anos, já deveria começar a pegar mal. Mas não: esse tipo de comportamento ficou bonitinho. A marmanjada não cresce mais. E, pra animar a festa, se provocam e se batem pelo único motivo que os separa: a roupa.

Mas entre tudo aquilo que você, acusado de moralista, pode achar chato, ainda é possível descolar um elogio – ou um comentário ao seu respeito que, pelo menos, lhe faça sentir bem. Não me lembro como comecei a conversar com uma barrigudinha de blusa espremida, com um lenço na cabeça e um cabelo ensebado, como seu rosto. Ela disse, sem que eu tenha perguntado, que era atriz e que sua peça favorita era Hamlet. Como uso óculos, estudo em uma escola supostamente boa e tinha acabado de ler a peça, precisei ouvi-la escandalosamente gritando: “Você é nerd!”. Ela virou de costas para mim e de frente para a amiga, pôs o dedo indicador na boca e se agachou, no ritmo sensual do som que estava tocando, chacoalhando as banhas. Foi um alivio saber que não pertencemos ao mesmo grupo.

É assim: escapou daquele estereótipo manjado e você se parece um alienígena – um nerd, digamos. Voltei para o meu canto. Ninguém me entende. Mas ainda me resta, além da Kaiser quente, uma saborosa e silenciosa diversão: eu entendo todo mundo. No inferno, pelo menos.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 25/2/2002

 

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