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Segunda-feira, 23/3/2020
Boccacio sobre a peste
Julio Daio Borges

Estou lendo a “História da Literatura Ocidental” (1959), de Otto Maria Carpeaux. Desde que li a “Odisséia”, de Homero, no final de 2012, venho me embrenhando pela Antiguidade clássica.

A “História da Literatura”, de Carpeaux, estava fora de catálogo, mas a Livraria Cultura, antes da recuperação judicial, reeditou-a, em dez volumes de bolso.

Cruzei com o primeiro volume, “A literatura greco-latina”, numa promoção de dez reais. Li com grande prazer e, na sequência, comprei o próximo, que é, justamente, “A Idade Média”.

Coincidência ou não - nestes tempos de coronavírus -, estava eu no Capítulo V, intitulado “O Trecento” (século XIV), quando me deparei, obviamente, com Dante, Petrarca e Boccaccio.

Carpeaux fala “en passant” sobre a peste, no “Decamerão”, de Boccaccio. Como tenho uma edição de banca, da coleção “Imortais da Literatura Universal” (1996), fui dar uma olhada…

*

Boccaccio começa localizando a peste no tempo (a tradução é de Torrieri Guimarães):

“(...) tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência.”

Boccaccio, então, localiza sua origem geográfica:

“(...) tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para o outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.”

Já naquela época, a Itália sofria barbaramente:

“Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo, começou a mostrar(...) de modo horripilante(...) os seus efeitos.”

Boccaccio, na sequência, descreve uma espécie de “lockdown”:

“A cidade ficou purificada de muita sujeira, graças a funcionários que foram admitidos para esse trabalho. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos conselhos foram divulgados para a manutenção do bom estado sanitário.”

Boccacio, então, descreve os sintomas da peste negra, mas eu pulo essa parte - que não nos diz tanto respeito - e emendo com o seguinte trecho (sobre a medicina da época):

“Nem conselho médico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de tais doenças. Ao contrário. Fosse porque a natureza da enfermidade não aceitava nada disso, fosse porque a ignorância dos curandeiros não lhes indicasse de que ponto partir e, por isso mesmo, não se dava o remédio adequado.”

Boccaccio prossegue com o charlatanismo:

“Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lição de medicina.”

E as consequências:

“Assim como era certo que poucos se curavam, também é certo que, ao contrário desses, quase todos, após o terceiro dia do surgimento dos sinais(...), faleciam. Sucumbiam uns mais cedo, outros mais tarde; a maioria ia-se para o túmulo sem qualquer(...) outra complicação.”

Boccaccio, então, descreve o contágio:

“Não apenas o conversar e o cuidar de enfermos contagiavam os sãos com esta doença(...), porém mesmo o ato de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa que tivesse sido tocada, ou utilizada por aqueles enfermos, parecia transferir, ao que bulisse, a doença referida.”

E a reação das pessoas:

“De tais circunstâncias(...), nasciam muitos temores e muitos lances de imaginação, naqueles que ainda estavam vivos. E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas, e deles. Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a saúde para si mesmo.”

Nasciam divisões:

“Formando seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera(...) Não ficavam a palestrar com ninguém, nem queriam ouvir falar de nenhum caso de morte, ou doença, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos(...) com os prazeres que pudessem ter.”

E mais divisões:

“Outras pessoas, levadas a uma opinião diversa desta, declaravam que, para tão imenso mal, eram remédios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, o rir e o troçar do que acontecesse, ou pudesse suceder.”

Ainda sobre esse grupo:

“(...)bebiam imoderadamente e sem modos. E com mais desbragamento agiam na casa alheia, obrigando os donos a escutar o que lhes desse na telha dizer. E podiam agir assim sem grandes preocupações, porque cada um - quase como se não houvesse mais viver - já deixara ao léu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dará a própria pessoa.”

Sobre a propriedade privada:

“Por isso, a maior parte das casas ficou sendo moradia comum; utilizava-se delas o estranho, que as adentrasse, como delas teria feito uso o próprio dono. E, com este proceder inteiramente bestial, as pessoas punham-se sempre longe dos doentes, tanto quanto possível.”

Não havia mais autoridade:

“Ministros e executores das leis, tanto quanto os outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares, e assim não podiam exercer nenhuma função. Em consequência de tal situação, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.”

Boccaccio ainda conta dos “moderados” que evitavam o “odor nauseabundo dos corpos mortos, das doenças e dos remédios”. E dos “vagantes”, que “deixaram a própria cidade, as próprias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas”.

Sobre as classes mais baixas:

“O tratamento dado às pessoas mais pobres, e à maioria da gente da classe média, era ainda de maior miséria. Em sua maioria, tal gente era retida nas próprias casas, ou por esperança, ou por pobreza.”

Boccaccio prossegue:

“Ficando, deste modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares por dia; como não eram medicados, nem recebiam ajuda de espécie alguma, morriam todos quase sem redenção(...) De pessoas assim e de outras, que faleciam em toda parte, as casas estavam cheias.”

E continua:

“Tão grande era o número de mortos que, escasseando os caixões, os cadáveres eram postos em cima de simples tábuas. Não foi um só o caixão a receber dois ou três mortos simultaneamente.”

Boccaccio detalha:

“Também não sucedeu uma vez apenas que esposa e marido, ou dois ou três irmãos, ou pai e filho, foram encerrados no mesmo féretro.”

“Não era suficiente a terra já sagrada”, Boccaccio complementa:

“(...) punham-se nessas igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como mercadorias nos navios; cada caixão era coberto, no fundo da sepultura, com pouca terra; sobre ele, outro era posto, o qual, por sua vez, era recoberto, até que atingisse a boca da cova, ao rés do chão.”

E no campo:

“(...) faleciam não como homens, e sim como animais, nas ruas, nas plantações, nas casas, dia e noite, ao deus-dará.”

E sobre os animais propriamente ditos:

“Sucedeu, pois, que os bois, os muares, as ovelhas, as cabras, os porcos, as galinhas, e mesmo os cachorros, tão fiéis sempre aos homens, passarem a perambular pelos campos, indiferentemente, por se verem expulsos da moradia de seus donos.”

Boccaccio tenta contabilizar a tragédia:

“(...)no período que vai de março a julho, mais de 100.000 pessoas é certo que foram arrebatadas da vida, no circuito dos muros da cidade de Florença? Nesse número estão incluídos tanto aqueles que foram levados pela força da pestífera doença, como aqueles que, doentes, foram mal atendidos, ou abandonados às contingências, em razão do medo que os sãos alimentavam.”

E conclui com desalento:

“Quantos vastos palácios, quantas casas magníficas, quantas residências nobres, antes cheias de famílias, de senhores e de senhoras, ficaram vagos, perdendo até o derradeiro serviçal!”

Prossegue:

“Quantas linhagens memoráveis, quantas heranças importantes, quantas riquezas famosas foram despojadas de sucessor legítimo!”

E ainda:

“Quantos valorosos homens, quantas mulheres belíssimas, quantos galantes moços - que Galeno teria considerado mais do que sadios, assim como Hipócrates, Esculápio e outros - tomaram o seu almoço de manhã com os seus parentes, colegas, e, em seguida, na tarde desse mesmo dia, jantaram no outro mundo, em companhia de seus antepassados!”.

*

Esses trechos fazem parte do começo do “Decamerão”. São pouco mais de dez páginas. Confesso que omiti três ou quatro trechos que assinalei, pois não tive estômago para publicar.

Se a História não fosse cíclica, eu diria que Giovanni Boccaccio (1313-1375) foi um profeta. (Reparem que não é o “Apocalipse”, e nem está na Bíblia - que, na verdade, não passa de um conjunto de livros...). Aconteceu...

Sinceramente, espero que a profecia não se realize. Ao mesmo tempo, olhando para a Itália agora, é impossível não encontrar similitudes...

Quando não sabemos o que vai acontecer, sempre podemos recorrer à História (que está coalhada de exemplos). E à literatura.

Me surpreendeu menos a semelhança com o que está acontecendo e, muito mais, as possíveis consequências…

*

P.S. - Se forem comprar Boccaccio, Carpeaux, ou mesmo Dante e Petrarca, lembrem-se de comprar no Portal dos Livreiros.

Julio Daio Borges
São Paulo, 23/3/2020

 

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