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Sexta-feira, 22/2/2002
Animismo
Marina Marcondes Machado

O animismo, dito de maneira bem simples, é uma palavra que designa, na psicologia infantil, um modo de ver as coisas do mundo pelas crianças pequenas: trata-se de dar vida aos objetos, de enxergar e se relacionar com a alma das coisas.

Desde o final do ano passado que os publicitários brasileiros, na onda das vendas de Natal, Verão e Carnaval, vêm se utilizando exageradamente de um novo-velho recurso, baseado no animismo. São exemplares: a campanha das Casas Bahia, que apresenta dancinhas e dizeres de "eletrodomésticos vivos" – ou, do ponto de vista do adulto, com homenzinhos fantasiados de eletrodomésticos – e a da cerveja Bavária, onde os copos têem rosto, pés e mãos, e falam a favor daquela cerveja; se é servida dentro dele outra cerveja, o Copo se suicida, o Copo grita, o Copo esperneia, afirma que passará mal... Curiosamente os atores desses comerciais parecem sempre os mesmos, em todo tipo de produto: são pessoas usando touca e com aquela cara de ator de teatro infantil da pior qualidade... o que talvez signifique que foram cadastrados nas agências como: "animistas", ou "homens-coisa", ou os "caras-de-dedo" ! (Já os publicitários das Lojas Marabrás foram mais espertos e não pagaram cachês: na campanha do "Carnaval do Amor", no "Carnaval da Paz", através de uma animação, os eletrodomésticos dançam mesmo, de verdade – não tem um hominho dentro não!!!).

Afinal de contas, com quem este tipo de campanha dialoga? Com a cabeça e o bolso de qual consumidor?

Desconfio que pretenda falar com "a criança interior", com o pequeno animista que haveria em cada marmanjo bebedor de cerveja e em cada marmanja dona de casa; mas o faz de maneira porcalhona, porque direta demais, não se aproximando nem um pouco da criança imaginativa. Muitas crianças revelam um "animismo" cheio de sofisticação, detalhes e matizes – são elas verdadeiras cineastas, pois amam as imagens e compreendem o poder simbólico dos objetos da vida cotidiana. Já os publicitários empobreceram ao máximo esse dom da criança pequena, demonstrando no seu fazer marqueteiro imaturidade maior e inteligência menor que a dos pré-escolares – fizeram daquele dom algo tão padronizado quanto um Carnê do Baú.

Pois, se observarmos de perto a criança e seu modo "animista", compreenderemos que a vida que é dada por ela aos objetos vêem de algo único, pessoal, não generalista; vêem da possibilidade de brincar a vida: sem pragmatismos, tendo todo o tempo do mundo para enxergar, talvez, o sobrenatural que a envolve no vento, na chuva, no sol a pino, no buraco da areia da praia... Mas não é com essa criança-poetiza que o publicitário conversa; ele conversa com "o menino que há no homem" do ponto de vista mercadológico.

O publicitário fala à criança que habita cada adulto e que teria vivido uma infância datada, consumista; conversa com alguém que fez uso de infantilismos para, por exemplo, pedir pro papai comprar aquele boneco que fala e aquele carrinho que anda sozinho... Assim os marqueteiros pressupõem que seus consumidores foram crianças idiotizadas, que já assistiam nas tevês propagandas tolas, feitas inclusive pelos mesmos marqueteiros (ou pelos seus pais? ou avôs?) e que achariam, hoje em dia, delicioso mesmo "imaginar" que tem um hominho no copo das "Bavááárias" que estão tomando.

Mas penso que esta campanha e seu animismo tosco não devem funcionar nem mesmo para aqueles que já estão consumindo cerveja diante da tevê de cada dia: eles que já encheram bem a cara no momento em que entra em cena O Copo, e então aí tomam mesmo "Qualquer Uma" e "A Que Tiver" – pois "Tanto Faz"... E será apenas porque já tomaram todas que essas últimas vão descer quadrado.

Depois, seu filho caçula virá desligar a televisão, e mandará o papai belo adormecido ir dormir na caminha. O caçula é compreensivo com a bebedeira e o cansaço do pai. Sua mãe foi hospitalizada sofrendo uma reação alérgica terrível, no sábado de Carnaval, depois de se masturbar utlizando o sabão em pó Ariel - caixa e pó - com milhares de maridos ideais em seus grãos. Os publicitários teriam esquecido de redigir bula explicitando efeitos colaterais.

Marina Marcondes Machado
São Paulo, 22/2/2002

 

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