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Quarta-feira, 24/8/2016
Sobre os três primeiros romances de Lúcio Cardoso
Cassionei Niches Petry

Logo no início da leitura do romance bate aquela inveja quando se sabe que o autor tinha entre 17 e 19 anos quando o escreveu. Maleita, de Lúcio Cardoso (Editora Civilização Brasileira, 236 páginas), é um romance de estreia que está no mesmo patamar de outras obras publicadas durante os anos 30. Aí o escriba aqui, com seus 38 anos, que mal e mal escreveu dois livros de qualidade duvidosa, lembra que, naquela época, outros autores escreviam suas primeiras obras antes dos 20 anos: Jorge Amado, com O país do carnaval, e Raquel de Queirós, com O quinze. Não tem como não me recolher à minha insignificância.

Cardoso escreveu a história inspirado no seu pai e o protagonista tem inclusive o mesmo nome. Em 1893, junto com sua mulher, Elisa, e um cozinheiro, Bento, mais outros agregados, Joaquim chega à localidade de Pirapora, em MG, a serviço de uma companhia de tecidos, para construir prédios e fazer crescer o lugar que fica às margens do Rio São Francisco. Enfrenta, no entanto, a resistência violenta de ex-escravos, incitados pelo mulato João Randulfo, pois o forasteiro impedia que eles seguissem seus costumes, como andar nus na beira do rio e fazer batuque, regado a muita bebida e orgias até altas horas da noite. “Os conflitos tornaram-se frequentes; os homens apareciam esfaqueados ou baleados pelos caminhos, sem que ninguém conseguisse achar o assassino. A tocaia era um meio seguro de se matar impunemente”.

O obstáculo maior, no entanto, são as doenças. Num primeiro momento, a malária, conhecida como maleita, a “doença infernal”, que inclusive leva sua mulher. Depois chega a varíola, que se espalha e deixa Pirapora isolada durante um tempo, levando os habitantes a passar fome, pois nenhum navio atracava na localidade por causa da peste. Joaquim, no entanto, segue forte, resiste, faz de tudo para salvar o povoado. É derrotado, porém, quando um político da vizinhança, o Coronel Tibúrcio Pedreira, consegue um “papel do governo”, nomeando justamente João Randulfo, que o apoiou nas eleições, para delegado de Pirapora. Seu inimigo, então, planeja a vingança: “Neste momento o mulato passava novamente, seguido por quatro ou cinco jagunços a cavalo. Em todas as faces eu li o mesmo olhar de ódio.” Joaquim decide, então, ir embora.

Pelo título do segundo romance de Lúcio Cardoso, pela leitura do livro anterior e por ter lido uma vez sobre o escritor ter sido enquadrado entre os romancistas de 30 no início de sua carreira, pensei que Salgueiro (Civilização Brasileira, 256 páginas) se passasse no interior de Minas Gerais de novo e que salgueiro fosse a árvore mesmo. Trata-se, no entanto, de um enredo que conta a vida de alguns moradores do morro que dá nome a uma das maiores escolas de samba do Rio de Janeiro.

Dividido em três partes, “O avô”, “O pai” e “O filho”, a narrativa foca-se nos conflitos de uma família pobre, que vive em um barraco alugado. Mais importante que as brigas, a doença do velho Manuel, a conturbada relação do pai, José Gabriel, com sua companheira, Rosa, e a vagabundagem do filho, Geraldo, são os conflitos interiores dos personagens a tônica do enredo, preconizando, como se sabe, o que viria nas obras subsequentes. O espaço externo ainda é determinante, como em Maleita, tanto que o objetivo de alguns dos personagens é sair do lugar. É o que fazem Genoveva, a avó, e sua filha Marta, depois da morte do avô e a fuga de José Gabriel depois de ter espancado Rosa e ela o ter denunciado por um furto.

É Geraldo, me parece, o protagonista do enredo, apesar de o coletivo ser o grande personagem, como em O cortiço, clássico naturalista de Aluísio Azevedo. A divisão das partes no faz pensar nisso, bem como boa parte do foco narrativo cair sobre ele. Jovem, vivendo no morro, órfão da mãe, “assassinada num conflito no morro”, e não dando certo em nenhum trabalho, Geraldo é um candidato à criminalidade, segundo seus próprios parentes. Mesmo se sentindo desprezado pelo pai, ele fica no morro para procurá-lo depois da fuga, numa tentativa de reaproximação.

Chamou minha atenção, nas duas primeiras obras, a presença forte dos negros. Em Maleita, que se passa logo depois do fim da escravidão, vemos seres abandonados pelos governantes, vivendo de forma quase primitiva. De escravos na “casa grande”, passaram a escravos do destino. Em Salgueiro, ambientado provavelmente nos anos 30, os negros e mulatos também são marionetes das Parcas, abandonados da mesma forma pelas autoridades, porém com perspectivas, ainda que mínimas, de mudança. Aliás, é sobre o abandono por parte dos deuses, ou de Deus mais especificamente, que Geraldo reflete perto do final do romance:

“Sim, o Salgueiro era uma terra condenada, uma terra de exílio, sem culpa, ali é que eles pagavam a pena de não serem lembrados por Deus (...). Por que ‘ele’ abandonava daquele modo as criaturas?”

A luz no subsolo (Civilização Brasileira, 368 páginas) foi um romance que me impressionou muito quando o li pela primeira vez. Era, porém, muito jovem e pouco me lembrava do enredo. Segundo os críticos, é o salto na trajetória de Lúcio Cardoso. Terceiro romance do autor, é o primeiro mais relevante da sua obra e na qual se foca na ficção introspectiva ou “sondagem interior”, de acordo com Alfredo Bosi, deixando de lado o regionalismo e o naturalismo das primeiras obras.

O enredo nos deixa angustiado desde o início. Não há tempo para respirar, salvo nas mudanças de capítulo. Todos os personagens sofrem com alguma coisa e o leitor sofre junto. Madalena sofre porque Maria, sua prima e criada, vai sair da casa, sofre com sua mãe alcoólatra e sofre por causa do marido, Pedro, que por sua vez sofre porque vai perder o emprego de professor, assim como sofre devido a seu passado, sua culpa, e sofre por causa da dívida com Bernardo, que sofre de amor por Madalena, que é também sua cunhada.

O sofrimento, por sua vez, causa o medo. É o medo da presença de Pedro que faz Maria querer ir embora, assim como a nova empregada, Emanuela, também tem medo dele (“Estava imensamente pálida e, apesar de conservar o mesmo ar infantil, transpirava violentamente da sua pessoa um medo extraordinário, um medo tão visível, que chegava a lhe marcar no rosto uma expressão angustiada de terror”). Madalena tem medo de Pedro atrás dos seus livros (“Os livros eram apenas uma trincheira. Por trás das capas amarelas ela se sentia espiada, vigiada, escarnecida, sensações idênticas a que experimentava Maria”) e Pedro tem medo do seu próprio eu, simbolizado no “mendigo resignado”, um ser que aparece em suas alucinações e com quem conversa.

Para Lúcio Cardoso, essa angústia e o medo são fruto de um mundo sem Deus. É essa a posição que se pode interpretar, pois alguns personagens questionam sua existência: “Nada me impede, pois, de me revoltar contra a ‘ideia’ de Deus”, diz Pedro a Bernardo que, no final, sobre o cadáver do concunhado, diz que “somos parcelas de um outro todo e esperamos um outro dia que não será aquele em que Deus aparecer no coração dos homens”.

Não há, no entanto, nada de proselitismo religioso na sua obra, mas sim a constatação do vazio interior do homem que nenhuma força divina consegue suplantar, como afirma Pedro: “A noite é escura, se te estenderes na linha férrea e a locomotiva despedaçar o teu corpo, Deus não te impedirá de morrer. Experimente e verás que tu podes destruir a ti mesmo”. Podemos perceber a atualização das tragédias gregas e do destino traçado, por mais que os deuses aparentemente interfiram para ajudar seus protegidos.

Não temos como fugir do subsolo da nossa existência. A luz não é para ser alcançada. Ela existe somente para nos mostrar que ela está lá e mais nada. Serve para nos manter na ilusão.

Cassionei Niches Petry
Santa Cruz do Sul, 24/8/2016

 

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