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Terça-feira, 27/9/2016
Simpatia pelo Demônio, de Bernardo Carvalho
Jardel Dias Cavalcanti



Um livro impactante. É o mínimo que se pode falar do romance Simpatia pelo Demônio, que Bernardo Carvalho acaba de lançar, pela editora Companhia das Letras.

Abrindo com o bisturi da linguagem, sem anestesia geral, o corpo das relações de amor e de guerra, para mostrar o quanto os dois universos se alimentam de forças humano-demoníacas, o livro de Carvalho nos faz mergulhar nos intricados universos do terrorismo político/religioso e das tramas do coração como se fossem o mesmo campo de força.

O escritor decidiu colocar sobre a mesa operatória esses dois corpos que se mutilam em nome da redenção (o amor e o terrorismo religioso/político) e a consequência é que o leitor é obrigado a tocar, cheirar e provar dessas entranhas que movimentam as forças do mal, criadas essencialmente pelos homens em sua busca pela totalidade.

Da defesa irracional que os homens fazem do “narcisismo coletivo a que chamamos nação”, ao desespero e artimanhas criados pela necessidade de amor, o livro abre as feridas da máquina infernal que é o ser humano.

A literatura de Bernardo Carvalho é construída através de cortes que vão nos fazendo pular de uma ação à outra, entre o tempo presente e as reminiscências, deslocando seu personagem do campo do terrorismo para o campo das lembranças amorosas, criando no leitor a intensidade do perigo que envolve as duas ações.

Para ficar mais claro, vamos à trama de Simpatia pelo Demônio. O principal personagem do livro, chamado Rato, é um funcionário de uma agência humanitária, estudioso da questão da violência, que recebe como missão entrar em uma zona de guerra comandada por radicais islâmicos e pagar o resgate por um refém. A trama se passa no momento em que Rato, em situação de perigo, se vê preso a um quarto de hotel ao lado de um terrorista que tem o corpo coberto de explosivos, depois que acontece uma explosão de um carro bomba na frente deste mesmo hotel em que está hospedado. Narrando esta situação de perigo de morte iminente, através de cortes na narrativa, vai se reconstituindo a memória da aventura amorosa de Rato com um homem que conheceu em um teatro em Berlin.

Tanto a situação de guerra como a situação amorosa em que Rato se meteu, são descritas como reflexo do colapso de sua vida. Casamento, carreira e família sobre um precipício o levam a dois precipícios maiores (campo de guerra e paixão irracional), razão talvez porque cair nestes desfiladeiros seja uma opção: Fausto buscando Mefistófeles.

A literatura de Bernardo Carvalho não tem piedade quanto a mexer nas entranhas do demônio. E o sangue respinga impiedosamente sobre o leitor. Seus personagens não são vítimas, mas são seres humanos em busca da completude, mas que pagam com o terror, a morte, a desolação, a irracionalidade as consequências de seus atos. “Vítima era a última coisa que o Rato queria representar naquela farsa. Não sentia nem estava se fazendo de vítima. Ao contrário, estava cego e apaixonado, pronto para ir à guerra e para matar, se preciso fosse.”

Na avaliação do romance, tanto a situação política das guerras preventivas (combate ao terrorismo) como as situações do coração de Rato (e porque não de Chihuahua, seu amante) não passavam “de um mecanismo de defesa já comprometido, como o das células enganadas por um vírus”. E as duas situações podem ser resumidas na ideia que o romance faz do amor, portanto qualificando a situação da dominação política, que gera a guerra e o terrorismo, como a mesma que trama o enredo dos amantes: “Talvez seja só isso o amor, a possibilidade entre um parasita e seu hospedeiro.”

O amante, tal como os países imperialistas, é um “vampiro disfarçado de donzela”. Na base disso, a definição da natureza do homem como um predador por instinto. O homem faz as suas guerras e constitui as suas relações amorosas usando os mesmos instrumentos para sua realização, é o que nos joga na cara a literatura de Bernardo Carvalho.

Um outro personagem importante em Simpatia pelo Demônio, é a terapeuta de casais. Ela amplia com suas falas a dimensão do buraco abismal que é a relação amorosa entre Rato e Chihuahua. E nos faz pensar também nas relações políticas entre os países, não deixando a culpa apenas sob responsabilidade de um dos lados.

Em um de seus comentários isso fica claro: “O predador não pode ser incapaz de amar, mas é antes aquele que, ao reconhecer o amor no outro, começa a caçar. A vulnerabilidade desperta os piores instintos. Para o predador, não há diferença entre o generoso e o vulnerável, são ambos fracos. E daí que não vê porque que se sentir agradecido nem culpado pela entrega do outro. (...) A paixão do predador só tem chance de sobreviver como luta entre os iguais, relação entre predadores.”

Se um personagem pede ao outro para agir como ele mesmo age, é como se a resposta à violência só fosse possível com a violência. Ao terror corresponde o terrorismo. “Foi exatamente o que Chihuahua chegou a pedir ao Rato, num momento de sincera tristeza, ao vê-lo desnorteado em suas mãos: pediu que tentasse agir como ele agia, para o bem dos dois.”

Só que o que o romance nos apresenta, é que essa estratégia de relação não criou um bem para os dois, mas o mal para a tortuosa relação. Pois o resultado do instinto humano para a dominação é a angústia e a desolação ainda maior da incompletude: “Sem o Chihuahua, agora ele sabia, não havia ligação cósmica possível, ele estava condenado a pecar.” Mesmo sabendo que “Sade [também] não era alternativa ao amor burguês”, como também a “paz” não era sempre a alternativa para a democracia burguesa.

A imagem dessa intricada relação, que o romance une nas perigosas condições tanto do terrorismo quanto do amor, se traduz como uma busca desenfreada dos humanos pela transcendência em ideais nacionalistas, na realização da vontade de Deus ou na democracia. Transcendência e dominação acabam por se aproximar e seu resultado é a violência. O estupro político/amoroso se realiza apenas no não consentimento, apenas no “desejo dominador” (...), quando invadia à força o interior do corpo dos outros, como se os colonizasse com seu esperma, tomando o que não lhe pertencia, fazendo seu o território alheio”.

Ao nos colocar nessas duas zonas de guerra (a existência particular e os dilemas da contemporaneidade política, onde as notícias estão a berrar na nossa fuça as imagens dos restos humanos que o terrorismo político e religioso fabricam e o fracasso da nossa afetividade num mundo onde os humanos se objetificam), Bernardo Carvalho desprovincianiza nossa literatura, levando nossas percepções a um campo mais aberto, para além do nosso quintal, mesmo que o mal seja a face do espelho do mundo que ele nos oferece.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 27/9/2016

 

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