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Quinta-feira, 29/9/2016
Aqui sempre alguém morou
Elisa Andrade Buzzo

Alguém já morou aqui, e sem perceber subiu a guilhotina, abriu a janela de treliça verde, num gesto automático. Morar aqui de início foi algo diferente, extraordinário, as paredes todas brancas, um prédio pequenino como o da infância, uma estreita varanda. E também, sem perceber, de repente esse alguém dormia como se navegasse, e já acordava num novo dia, um corpo que o mar devolve fresco à terra – rolando na areia, com algas secas nos olhos. Assim como águas turvas começam a envolver este corpo numa noite de inverno.

Sempre morou alguém aqui, e sentiu por anos o som do viaduto subindo, vir o transporte das peças gigantes, e quanto bate-estacas e transtornos e ruído de construção de grandes proporções. Cada vez mais longe, a elevação foi se distanciando como barulhos bruscos do fundo do mar, de pedras batendo. E pela primeira vez numa manhã sentiu a fúria dos carros do oeste ao centro. Todo esse sofrimento agora é uma corrente constante a se desenhar no sono todas as manhãs.

Antes, ainda outros acompanharam a aparição da igreja, que também subira bem ao lado desse lugar de morar, pedra a pedra, torre, capitéis e arcos, seus anjos e suas trombetas douradas e mudas, e o sino da independência a ser alçado. E ele ainda toca aos finais de tarde e nas manhãs de domingo e, mesmo que esvaziado, atravessa os rincões ressequidos desse lago recortado.

No grande viaduto face à igreja blocos de carnaval passariam incólumes ao desejo de sossego no bairro. E aqueles que mais tarde aqui se instalaram observaram de cima da varanda a passagem amena dos foliões, como perdizes despenadas, e aquele som de alegria se desvanecendo no ar.

Quem quer que aqui tenha residido não esteve a tempo de obter um gordo galho de fícus em sua janela. O caule e as raízes cada vez mais grossas, agressivas, superficiais. Que esse conjunto de fícus transpirou, hauriu com línguas a princípio pequeninas e altivas essa água da terra logo ao lado deste prédio. E não havia nem há apenas uma árvore, mas um grupo tão grudado que de qual exemplar é esta verde parede alvissareira que recobre esta janela não se pode mais saber.

Diante dessa visão maravilhosa e definitiva de grandes construções e destruição do largo, quem aqui morasse ficaria ilhado nos ruídos domésticos, como a água espiralando pelo encanamento ou os vizinhos subindo ofegantes e cansadamente a escadaria. Aos sábados, a vassoura bruxa raspando os degraus e a água escorrendo abundante em pequena cascata de três andares, até a última umidade ser bebida pelo piso. Quem sabe o cheiro de cigarro, cebola e alho ou bacon empesteando tudo. Espere, há um ruído indistinto, de coisa parada ou se mexendo, de vento, quem sabe roçar de folhagem, talvez aquele que o próprio mundo emite pela natureza nas madrugadas recortadas esparsamente por carros.

E como seres vivos e latentes aqui vivemos, nunca exatamente juntos, mas sempre concomitantes a outros seres e rituais, a certos estalos particulares do edifício. E numa madrugada, escura como essa, haveria quem esperasse pelo jornal, pelo leite, pelo pão, pelo toque delicado da campainha, como neste momento espero pelo amanhecer, no formato de um bico de pássaro que se abrirá frente ao futuro, neste mesmo lugar, onde alguém sempre morará.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 29/9/2016

 

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