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Quinta-feira, 6/10/2016
A Coreia do Norte contra o sarcasmo
Celso A. Uequed Pitol

A Coreia do Norte é conhecida por suas leis, digamos, estritas. E nós acabamos de infringir uma delas: deve-se chamar o país de “República Democrática da Coreia”, e não “Coreia do Norte”. Para o governo de Pyongyang, há apenas uma Coreia verdadeira; a outra, a do sul, é tão falsa que sequer merece a honra de ser grafada com letras maiúsculas. Sim, aí está outra lei: o nome da vizinha Coreia do Sul só pode aparecer com o “s” de “Sul” minúsculo.

À imensa lista de proibições coreanas – é desnecessário dizer “norte-coreanas”, já que, como sabemos, Coreia de verdade só há uma – soma-se agora mais uma: a proibição de se fazer comentários sarcásticos sobre o presidente, Kim Jong-un ou sobre qualquer tema ligado ao país.

É claro que leis deste tipo geram um problema: como reconhecer um comentário sarcástico? Excetuando os casos óbvios, pode ser muito difícil. Por exemplo: alguns coreanos (e não norte-coreanos, nacionalidade que, como vimos, não existe) costumam dizer que este ou aquele problema que encontram “é culpa dos americanos” em tom de gozação: é uma referência clara ao discurso anti-EUA do governo do país. Como distinguir, neste caso, a zombaria do anti-americanismo sincero?

Para alargar o âmbito de aplicação da norma, os governantes coreanos (enfatizamos: coreanos, e não norte-qualquer-coisa) definiram que certas expressões faciais e gestuais também estão incluídas na proibição. Traduzindo: um sorriso fora de lugar pode levar alguém à prisão. Mas surge outro problema: como reconhecer os sorrisos fora de lugar? Quem já viu fotos onde Kim Jong-un aparece junto a correligionários, ministros ou o povo sabe que seus interlocutores estão ,invariavelmente, sorrindo. Mais do que isso: em muitos casos, estão gargalhando; gargalhando abundantemente, em espírito de celebração. Gargalhando entusiasticamente. Quase em êxtase. De chefes de gabinete a criancinhas em apresentações artísticas, todos os coreanos que se aproximam do líder máximo reagem com vivos e abundantes sorrisos. Não é fácil distinguir as sinceras manifestações de alegria dos risinhos irônicos dos maliciosos.

A presidência, naturalmente, sabe disso. E sabe também que , em situações assim, é melhor prevenir. Por isso, está promovendo uma série de palestras e encontros com a população para explicar as novas regras. Um entrevistado resumiu o teor destas palestras: “Mantenham as bocas caladas”. Na dúvida, é melhor não rir. Nem se o riso for sincero.

Celso A. Uequed Pitol
Canoas, 6/10/2016

 

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