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Quinta-feira, 3/11/2016
As crianças do coração do Brasil
Elisa Andrade Buzzo

Uma tarde de primavera plantado na praça da Sé. Fazendo companhia para as palmeiras. Grudado que nem uma traça, nesse chão em que eles não param de ir e vir. Mandaram a gente ficar aqui, no meio da praça, no marco zero, sem arredar pé. Estou pouco me lixando a essa altura para esta rosa-dos-ventos. O sol bate de um jeito implacável, fazendo tudo quanto é cheiro ruim subir e querer grudar na gente.

Esse cheiro fétido, uma boca cariada que se abre, uma roupa que balança e tudo que ela envolve é podre, sem mais volta, e exalando um corpo que se estraga a olhos vistos, a qualquer hora. O caminho deles é assim, agora numa só direção, que é esse vai e vem que não leva a lugar algum, uma espécie de cemitério de vivos mortos. E eles exalam esses odores e uma raiva a tudo e a todos.

Gente que te chama de filho da puta, vai tomar no cu, e ouvimos isso por horas a fio e me pergunto, qual será o efeito em mim dessa constante difamação, sem poder desferir um outro grito, uma lágrima ou um golpe? E se pudéssemos, adiantaria algo sublimar a raiva gerada por outra raiva derramada sobre nós? E a sua cara vai se tornando de paisagem, tentando encontrar uma linha no horizonte além da realidade. Porque a realidade é fantasmagórica, repleta de zumbis e seu fogo-fátuo.

Há homens de olhos vazios agarrados em sua “barrigudinha”, sua pinguinha de um real. Malandragem, solitários, famílias, desalojados, excluídos e aproveitadores. Estão lá todos os dias, como nós, variados e iguais. E ainda há crianças, tão pequenas, ao lado dos pais, bêbados, futuros brasileiros perdidos na roda da fortuna do marco zero paulistano.

E elas aprendem rapidamente, como toda a criança. Aqui, aprendem esse mundo do entorno, do desprestígio de ser humano. Brincam como qualquer criança, de roda, no centro do Brasil, que gira aqui, e nos entontece a todos. Felizes, pois ainda são crianças e não entendem as sutilezas desse ambiente de sujeira e falta de cor, mas já sentem algo, um desajuste, um desalinho. E estão distantes dos meios e dos fins, do essencial e do melhor, e até mesmo de toda a política assistencialista do governo federal, aqui, no coração do Brasil.

Cedo, elas entenderão, vão abrir suas bocas, seus casacos, e quando isso ocorrer, já teremos definitivamente voltado as costas a elas. E elas virão, cedo ou tarde, em direção às nossas.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 3/11/2016

 

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