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Quarta-feira, 27/2/2002
O mundo é o hemisfério norte
Daniela Sandler

O mundo é o hemifério norte. O que mais se pode depreender das declarações oficiais e extra-oficiais de que as Olímpiadas de Inverno de Salt Lake City, encerradas no último domingo, serviram para “unir o mundo”?

Não foi só uma vez. E não foi apenas em piegas comerciais de tevê ou vinhetas de patrocinadores olímpicos. Foi também na voz de comentaristas, jornalistas e repórteres, dizendo coisas como “o mundo inteiro está prestando atenção no que acontece aqui”. Não importa que metade do mundo não participa dos jogos e não acompanha seus resultados. Não importa que metade do mundo nem mesmo pratica esses esportes, e, mesmo se quisesse, não teria condições materiais para isso. Aqui, ninguém liga.

Você ainda poderia pensar que o ato falho é esquecimento, ainda que imperdoável, como se ninguém tivesse parado para pensar que falta um hemisfério, ou quase, no tal mundo. Se fosse o caso, seríamos bem-vindos, ainda que esquecidos. A gafe causaria rubores, e eu não precisaria escrever uma coluna sobre o absurdo dessa exclusão.

Não é que sejamos simplesmente esquecidos. Nós nem sequer contamos, nem mesmo como elemento faltante. Não fazemos falta. E, quando nos fazemos conhecidos, somos solenemente ignorados – ou, pior, somos postos novamente em nosso lugar, debaixo do tapete do Equador. Quem leu a minha última coluna já deve ter concluído que não estou falando apenas de Olimpíadas. Elas são o sintoma de uma doença muito pior que elitismo esportivo, e nos dão a medida da gélida distância entre o mundo dos picos nevados, o primeiro, e o nosso, ao rés-do-chão. É de quebrar o pescoço.

Festa do caqui

Voltemos, então, ao nosso termômetro. Para além do involuntário exclusivismo de observações como as reproduzidas acima, a atitude está tomando corpo e forma de maneiras mais concretas, disfarçadas sob desculpas aparentemente objetivas. Uma dessas desculpas saiu da boca de vários atletas entrevistados durante os jogos de Salt Lake, e aparentemente refere-se a critérios puramente esportivos.

O tema é o número inédito e crescente de atletas e nações improváveis, gente do terceiro mundo, de países tropicais ou equatoriais, sem neve, montanha ou lagos congelados – os “underdogs”, como são chamados em inglês. Sim, sim, nós, brasileiros, fazemos parte desse contingente. Nós, e mais venezuelanos, tibetanos, vários africanos, outros sul-americanos – nesse time, de acordo com os norte-americanos, estão incluídos até mesmo os argentinos e chilenos, que, afinal das contas, têm neve, montanha e lagos congelados em seus países.

Quando a onda começou, com a contagiante história dos bobsledders jamaicanos contada no filme Jamaica Less Than Zero, o mundo achou graça, admirou a determinação e o esforço dos atletas e elevou seu pioneirismo a exemplo de espírito olímpico. A popularidade pode ser medida pelo sucesso do filme. Nas penúltimas Olimpíadas, em 98, em Nagano (Japão), quando o grupo dos azarões era bem menor, também houve espaço para elogios e aplausos, tanto do público comovido como de atletas vitoriosos.

Neste ano, o esforço e o exemplo desses atletas pioneiros finalmente vingaram. Os underdogs compareceram mais numerosos que nunca. Motivo de festa? Finalmente o espírito olímpico triunfou? Júbilo pela “união mundial”? Não. A imprensa não deu muita atenção, a não ser para dizer que os atletas improváveis já não são mais novidade. O público também não ligou muito, excetuando-se uma singular parcela que se compraz em cultuar underdogs (assim como existe cult-movie, em geral alguma esquisita e obscura produção trash, há os cult-atletas). E os demais competidores, chamados não por acaso “atletas de elite”, torceram o nariz – sem pudor, para todo mundo ver.

A rede de televisão NBC, que detém os direitos exclusivos de cobertura, praticamente ignorou os underdogs. Sendo a televisão o principal meio pelo qual os jogos foram vistos, vocês podem imaginar a importância disso. Houve uma ou outra menção em jornais e internet, mas a abordagem foi quase exclusivamente folclórica, destacando o curioso aumento dos atletas e nações improváveis. Os “Bananas Congeladas” (precisa dizer mais em termos de folclore?), cujo sucesso foi propagandeado pela imprensa brasileira, ganharam talvez alguns segundos de fama – e olhe lá. Na tevê, nada de bananas - isso porque fiquei plantada em frente à tela, assistindo pacientemente aqueles trenozinhos descendo a pista de bobsled.

Resumo da ópera: enquanto somos os bobos-da-corte, a atração curiosa ou divertida, exótica, ou a fonte de comoção (como os pioneiros), tudo bem. Mas que não venha o circo inteiro, parecem nos dizer... Veja o caso do norueguês Bjorn Daehlie, por exemplo. Em 1998, na Olimpíada de Nagano, o atleta, após vencer o esqui cross-country (10 mil metros), plantou-se na linha de chegada para esperar o queniano Philip Boit. Boit, o primeiro queniano numa Olimpíada de Inverno, terminou em último lugar, mais de 20 minutos depois de Daehlie, que fez questão de abraçá-lo pelo feito. À época, o episódio foi considerado um dos momentos mais comoventes dos jogos.

Neste ano, em que Boit voltou e a legião de improváveis aumentou, Daehlie não se declarou tão satisfeito. Apesar de conceder que é bom que o esqui inclua atletas de diferentes níveis, ele disse também que "seria um problema se fosse um número muito grande". Com Daehlie concordaram vários jornalistas, analistas esportivos e autodenominados "tradicionalistas".

Para eles, os underdogs são gente que quer chamar a atenção por méritos não-esportivos, que não merece dividir a pista com atletas "sérios". Acham que isso atrapalha a Olimpíada de várias maneiras: tira a seriedade das competições; sobrecarrega a organização dos jogos; e causa caos, atrapalhando o curso dos eventos. Em suma, vira a festa do caqui.

Para que Olimpíadas?

Pode-se concordar com esses argumentos, e entender que tudo isso acaba prejudicando, de uma forma ou de outra, os atletas de ponta. Pode-se também perguntar se esse nosso encantamento com deuses esportivos, com suas proezas inebriantes e inacreditáveis, não nos afasta de ações mais produtivas e democráticas, que incluam em vez de excluir, que celebrem de fato a união do mundo pelo esporte (e não só) em vez de aguçar ainda mais as desigualdades – e, o que é pior, justificar a exclusão.

Para que Olimpíadas, afinal? Para unir e reunir nações de todo o mundo, para que as rivalidades sejam exorcizadas em disputas esportivas, e não em campos de batalha; para que o orgulho nacional seja posto em ação em competições e pódios, em vez de ser transformado em ódio e destruição. Teoricamente, isso é parte do espírito olímpico – canalizar os inevitáveis impulsos belicosos e agressivos em um evento pacífico, festivo, celebratório.

Mas, como escrevi antes, a violência e a agressão têm muitas formas, muitas delas ocultas. A exclusão social, política, cultural e econômica são manifestações silenciosas, mas não menos poderosas ou cruéis, de violência. A exclusão esportiva, da qual o elitismo olímpico é um exemplo, intersecciona todas essas formas de exclusão e compactua com elas.

Não estou, é claro, defendendo que os jogos olímpicos sejam abertos a todo mundo – pois isso é o mesmo que nada. Como em tudo – universidade, bolsa de estudo, emprego – é preciso que haja seleção, não apenas por motivos práticos, mas por adequação. Não faria o menor sentido, por exemplo, que eu participasse de uma olimpíada só porque gosto de nadar, se eu chegaria todo um minuto depois da primeira colocada. Assim como seria um desperdício que minha bolsa de estudo fosse dada a um jogador de futebol profissional.

Estou falando de algo muito diferente. Neste caso, de atletas que, se consideradas as dificuldades logísticas, financeiras e sociais, tiveram de mover montanhas muitíssimo mais altas que as encostas alpinas sobre as quais os esquiadores de elite treinam. Os atletas de ponta ficam irritados em parte pelo fato de que é “fácil” para um atleta brasileiro, por exemplo, conseguir qualificação olímpica. Preenchendo os requisitos mínimos para qualificação (definidos em relação aos tempos de elite), estão dentro. Já que há muito mais atletas de alto nível nos países desenvolvidos, a competição por uma vaga entre eles é bem mais acirrada, e o número limitado de vagas pode resultar no fato de que um americano com performance melhor que um brasileiro não consiga participar de uma olímpiada, enquanto o brasileiro entra. Se a questão é “mérito”, no entanto, pode-se argumentar com igual convicção que o esforço e os obstáculos vencidos pelo brasileiro foram muito maiores.

Mas a questão não é só mérito. As olímpiadas (ainda) pretendem ser palco de confraternização internacional. Para tanto, precisam permitir variedade de representações nacionais – e prevenir monopólios. Daí as cotas, os limites do número de vagas, e os requisitos que muitos consideram “permissivos” para qualificação.

Olimpíada neoliberal

A desconfortável entonação política dos jogos incomoda outras pessoas além dos underdogs. Afinal, as transações perturbadoras entre os dois domínios – política e esporte – inquietam desde os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, que Adolf Hitler usou como palco e suporte ideológico, passando pela doentia competitividade durante a Guerra Fria (quem não se lembra das inchadas alemãs orientais e chinesas?), e culminando no ato explícito de política e terror das Olímpiadas de Munique, em 1972.

Por essas e outras – incluindo o recente “escândalo da patinação artística” em Salt Lake –, alguns analistas esportivos e políticos chegaram a sugerir que a idéia de “nação” fosse completamente removida das Olimpíadas, e os atletas competissem individualmente. Triunfaria a outra parte do espírito olímpico – a de que vença o melhor, por excelência esportiva (e não a de união entre os povos). Talentos individuais poderiam ser patrocinados por instituições (públicas ou privadas) de qualquer nação.

A proposta radical, que gostaria de extirpar interesses escusos e focar a atenção puramente no esporte, é também muito ingênua – em vez da briga política, teríamos a briga comercial; em vez dos Estados Unidos versus Alemanha, teríamos Chevrolet versus Mercedes. E, nessa era neoliberal de corte de gastos públicos (ou seja, educação, saúde, cultura, arte e esporte, essas coisas impalpáveis e não-práticas), os governos seriam finalmente desobrigados de investir em atletas, treinadores, treinamento e infra-estrutura. Felizmente, a “olimpíada neoliberal” ainda está muito longe de virar realidade.

Que isso não nos distraia do fato de que, ao lado da dimensão política – e de braços dados –, está a dimensão econômica das Olimpíadas. Ninguém esconde que são, para muitos, um bom negócio, apesar dos custos fenomenais que quase impediram a realização do evento em Salt Lake. Os investimentos, em sua maior parte, são públicos – quem arca com as despesas é o governo (e os impostos dos cidadãos). Os lucros são privados – audiência televisiva, visibilidade e marketing para patrocinadores, indústria turística local, etc. Ou seja, business as usual.

Não é à toa que há tanta briga para sediar os jogos. Mesmo sabendo do enorme custo financeiro e humano do evento, muitas cidades vêm nas Olimpíadas (de verão ou inverno) a oportunidade de atrair prestígio, atenção, e – principalmente – recursos internacionais, investimentos e dinheiro. A ironia é que, pelos critérios de escolha das cidades-sede, aquelas que mais precisam de recursos são justamente as cidades que não têm chance de vencer a disputa (Brasília, por exemplo) – os underdogs.

Justiça seja feita, até mesmo comentaristas de tevê notaram o fato de que os custos cada vez maiores de uma Olimpíada (incluindo a paranóia com segurança) excluem muitas nações, como por exemplo países latino-americanos. Enquanto o repórter da NBC fazia essas observações em off, a rede mostrava cenas da cerimônia de encerramento do dia anterior. Não surpreende que a câmera tenha dado um close na... bandeira brasileira. O que surpreendeu foi a sugestão de Tom Brokaw, o âncora da rede: de que talvez seja o caso de fazer um “downsizing” dos jogos olímpicos, para que eles não se tornem proibitivos para a maior parte do mundo. Talvez eu não seja a única idealista a esperar que as olimpíadas não se rendam totalmente ao seu lado elitista e excludente...


Daniela Sandler
Rochester, 27/2/2002

 

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