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Segunda-feira, 27/3/2017 Casa Arrumada Ricardo de Mattos 2 Anos atrás, participei de um estudo relâmpago sobre a escuta clínica. Certa altura da tarde, fiquei no grupo em que cada componente deveria descrever uma casa. O objetivo não era avaliar certeza ou erro, mas colher o conteúdo. Creio ter saído bem ao descrever uma casa de tijolos à vista e musgo nas paredes externas, com móveis de madeira em seu interior iluminado por uma lareira. A coordenadora do grupo revelou que a descrição da casa seria uma forma da pessoa descrever-se a si mesma, expor algo do seu íntimo. Em Nise: no coração da loucura, o melhor filme brasileiro de todos os tempos, amparado no livro Imagens do inconsciente de autoria da psiquiatra, um dos pacientes demora a desenhar uma janela aberta nos ambientes que desenhava. Revelou, assim, sua dificuldade em ter contato com a realidade, com o mundo. Minha casa era aquecida e a penumbra não me impedia de encontrar nos outros cômodos aquilo que eu precisasse. 3 Inspirou-me um trecho de encontro no qual figurava o filósofo e educador Antonio Cortella, encontrado no Youtube.com sob o título Casa arrumada é casa triste. Neste trecho, Cortella não se refere ao conteúdo psicológico de uma casa, mas à mudança dos costumes sociais e compara as festas de sua infância ao que ele testemunha atualmente. O filósofo afirma que, criança, era feliz por quinze dias, tempo necessário para preparar sua festa de aniversário e depois arrumar tudo. Nos dias de hoje, afirma, as crianças são levadas para um buffet infantil, "lugar estranhíssimo", tipo de "motel pedagógico" que não pertence a ninguém. 5 Casa arrumada é casa triste, como afirma Cortella? Em termos. Aqui em casa a vida transcorre - como em muitas coisas - alternando entre extremos. Pelo ramo materno, os cômodos de uma casa seriam realmente cenários a espera da visita de algum fotógrafo de revista de decoração - ou decorativa. Não fosse o afastamento e a setorização que permitem a convivência, a sala ainda estaria intocada. Parte da angústia de minha mãe origina-se no fato de se deitar no sofá. Ela mesma rendeu-se e deita-se neste móvel, mas deita com o corpo duro, tenso, punindo-se por violar sua convicção de que uma sala deve ser estática. Na casa de seus avós, a sala de visitas era local em que pessoas selecionadas entravam em datas específicas. 6 No que dependesse do meu pai, por outro lado, a porta da casa seria amarrada com um pedaço de arame e dormiríamos em esteiras no chão. Dormir em esteiras é a realidade de muitas pessoas no país e no mundo, mas é esperado de quem trabalhou a vida inteira e amealhou seu pé de meia que se permita um pouco mais de conforto e de cuidado. Não é "frescura" deixar tudo em ordem ao sair do cômodo ao qual demorará a voltar. 8 Talvez Cortella queria referir-se à moradia formal, o que é uma contradição em termos. Onde moramos é que desejamos andar de chinelo e sentar-nos preguiçosamente. Onde moramos é que usamos nossas roupas mais confortáveis. Minha avó materna defendia que a pessoa, em casa, deveria estar trajada como se estivesse prestes a sair. Atenuo este posicionamento sem recorrer à fantasia de mendigo. Quero mexer na terra quando der vontade, e não me preocupar com a comida que respinga. Jamais afastei um cachorro que viesse cumprimentar-me, com medo que grudasse pelo ou passasse cheiro. Se em casa não posso ficar à vontade e desprevenido, onde ficarei? Uma cama arrumada não é apenas um trabalho extraordinário, mas a preparação do lugar que deitarei quando cansado e adormecerei se possível, sem estragar o sono para remover de debaixo do corpo, a coberta que ficou embolada. 9 Certo amigo observou que eu não poderia ter morado em república estudantil. Não sem lamentar, ele discorria sobre colegas que escondiam e estragavam pertences alheios, viam sua comida sendo consumida ou desperdiçada por aqueles que em nada contribuíam, demoravam a encontrar sua roupa e só encontravam-na usada e fedida, ou transformada em pano de secar banheiro. Este amigo veio de uma casa comum e hoje, casado, também reside com a mulher e o filho numa casa comum. Ou seja, todo o vandalismo que presenciou - o qual deve ter instigado, pois não é flor que se cheire - não foi determinante para uma nova "visão de mundo", um desligamento da família. Recebeu valores, manteve-os e adquiriu outros em sua jornada. Estão corretos aqueles que comparam o sicrano a um caramujo, levando pela vida a casa nas costas. Meu amigo levou consigo certa educação e manteve-a na nova residência, adaptando o que foi necessário aos novos tempos. O vandalismo foi apenas vandalismo, não atitudes libertárias nem ritos de passagem ainda não descritos pelos manuais de antropologia. 11 Certa senhora pediu-me: "se você souber de uma mesa de cozinha, eu estou precisando. Lá em casa nós sentamos em bancos com o prato no colo". A trabalhadora do centro contou-me: "na casa daquela outra pessoa, eles sentam no chão para comer". Realidades difíceis em que ideais de vivência e de convivência são confrontados. Todavia, mesmo que a penúria material ainda prevaleça, gostaria de ver estas pessoas compensando-a com o espiritual, unindo-se na dificuldade e mantendo o vínculo na melhora. Um lar é um ambiente, uma cena onde intercalam-se momentos trágicos e felizes. O chinelo adquire a capacidade de vôo, mas também voa-se para abraçar a pessoa querida. Há conflitos, mas há compensações. Eu passava com minha mãe pela copa e a finada Bahiana estava deitada de barriga para cima, toda esticada e apoiada contra a parede. Perto de sua boca, uma pequena poça de saliva. Olhamos o animal entregue ao sono e a mãe observou: "o que é sentir-se segura". A cadela acordou tranquilamente, espreguiçou-se e balançou a cauda, não tendo passado por experiências ruins que a fizesse temer nossa presença. 12 Estou convencido de que o ambiente de um lar pode refazer o indivíduo para as lides do mundo. Se no mundo é que aprendemos que tudo nos é permitido e que nem tudo nos convém, e se no contato social é que distinguimos uma coisa da outra, o lar seria o ambiente ideal para pensar a respeito. Arrisco a dizer que, na medida do possível e sem inocência - há muito que a perdi -, quando o local de trabalho ou o local onde pessoas são de alguma forma atendidas assemelham-se a uma casa organizada, o rendimento pode ser surpreendente. No trabalho clínico, uso poltronas dispostas frente a frente e a luz de um abajur. No centro espírita que coadministramos, esforço-me por manter certa ambiência doméstica. No último dia de trabalho do ano passado, aberta a casa aos familiares das colaboradoras, um senhor sentiu-se tão à vontade que não se absteve de repetir várias vezes a sopa oferecida, preparada com capricho e retirada diretamente da panela sobre o fogão. Este ano, outras colaboradoras assentaram-se com tanta espontaneidade na sala em que costumo atendê-las que percebi quebrado certo formalismo prévio. Às crianças que acompanham suas mães ao centro, é servido um lanche de leite com biscoitos no meio da tarde. Algumas têm ali o acolhimento que falta em casa. 13 No parágrafo anterior, mencionei coisas que são esperadas de pessoas e instituições destinadas a acolher o humano em sua passagem. Ficar no local da sessão não é o objetivo da terapia, assim como morar ou viver do centro não é o objetivo da ação social. Acolhemos o humano em sua passagem e almejamos fazer com que este breve e periódico encontro seja de qualidade. Passo além foi dado por pessoa que alugou uma casa para acolher moradores de rua e tentar readaptá-los à chamada "vida civil". Fez da moradia um espaço de recuperação, de redescoberta da dignidade de cada um que acolhe. Lá alimentam-se, banham-se, dormem, participam de encontros com pessoas que aceitam levar-lhes a palavra útil e, querendo, dão os primeiros passos para regularização da vida civil. A pessoa realiza este trabalho após seu expediente. Trabalha num presídio no qual tenta, com toda dificuldade que se pode pressupor, estabelecer o tratamento diferenciado como forma de resgate da humanidade de quem lá encontra-se. Ricardo de Mattos |
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