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Terça-feira, 30/5/2017
Um parque de diversões na cabeça
Renato Alessandro dos Santos


Sábado, fui com a família ao Pedro II assistir a Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto em ação. Já havia ido em outras horas, mas como desta vez não houve igual. Ganhei os convites. Iria no domingo, de graça, mas com os ingressos nas seis mãos de minha família, para a gente ficar na plateia, logo abaixo daquela gota imensa no centro do teto do teatro, obra de Tomie Ohtake (1913-2015) ― isto é, com a filarmônica a tocar a poucos metros de distância, numa sinestesia entre os olhos e os ouvidos, ― não havia por que não ir, até porque lugar melhor que esse só se estivéssemos sentados em lótus no palco, no meio dos músicos, com um gravador de rolo no colo de cada um.

Chegamos. Sentamos. Levantamos. Fomos ao banheiro. Tomamos água gelada do bebedouro. Voltamos aos assentos. Tocou aquele sinal anunciador de coisa boas do teatro e, com os músicos já ocupando seus lugares, surge o spalla, com seu violino flutuando entre o ombro e o queixo, para afinar a filarmônica. Não sei por que, mas nem todas as pessoas dão a atenção que esse momento merece: aquela nota única, repetida em todos os instrumentos, é de uma beleza ímpar. Seria capaz de comprar um CD que tivesse, inteiro, esses segundos de afinação.

A afinação chega ao fim ― e a Nona Sinfonia, com aquele começo em que tudo parece se ajustar em unidade? ―, o spalla senta-se e, sob aplausos, surge o maestro Parcival Módolo, que cumprimenta a plateia, os músicos, pega o microfone, agradece a presença de nós todos e anuncia tanto a ausência do pianista titular como a mudança na programação daquela noite, cujo setlist sabíamos todos, porque, à entrada, ainda recebemos a revista Movimento Vivace, de distribuição gratuita. O mundo todo deveria ser de graça. O maestro, de uma simpatia acachapante, fala do que virá pela frente na primeira parte do concerto. Esfrego as mãos. Ele explica: Parque de Diversões, do canadense Michael S. Horwood (1947), um passeio a céu aberto com as peças musicais a transitar, primeiro, como um teleférico sobrevoando o parque, para, em seguida, visitar o Splash, o carrossel, o trem-fantasma e a montanha russa. Parcival diz que nem mesmo no Youtube encontraremos uma apresentação inteira dessa obra. “Há apenas em streaming”, diz. “Gravado em Varsóvia”. Hum, expectativa maior ainda deixou em todos o comentário do regente. A segunda peça, Eclogue, de Gerald Finzi (1901-1956), traz um jogo de diálogos entre o piano e os instrumentos de corda ― e meu filho, meu pianista predileto, por causa de uma surmenage, quase desmaia quando vê, tão de perto, seu primeiro Steinway & Sons. O maestro mais uma vez agradece a presença de todos e dá as costas ao público, mas só porque tem de, com as mãos, com a cabeça, com os olhos, com o rosto, com o corpo em flecha, conduzir aqueles músicos, pegando-os pelas mãos e levando-os a um passeio emocionante ao parque, conosco a tiracolo. E, expecto patronum, a música começa a tocar cada pessoa que está dentro do Pedro II naquele momento, feito mágica.

Esse 13 de maio de 2017 vai ficar marcado como o dia em que vi a melhor apresentação de uma orquestra sinfônica em meus 45 anos de existência patibular. Dividida em duas partes, o concerto começou com a suíte Parque de Diversões (Amusement Park Suite), que é, como o maestro havia falado, dessas obras em que se imagina os brinquedos sugeridos pela orquestra. Foi assim que o divertimento iniciou-se com “Teleférico”, como se, olhando para baixo, lá estivesse o parque, com ecos de outros temas a subir pelos pés, invadindo os ouvidos; “Splash” vai da placidez dos botes na água até o tsunami que culmina com um 'tchibum' perto do fim. Meus ouvidos esperaram por esse obus na água, mas não o achei, o que não alterou em nada a beleza dessa parte da suíte, embora confirmasse, para mim, minha incompetência e falta de imaginação auditivas. Vêm “Carrossel”, em torvelinho, com o girar metódico dos cavalinhos, “Trem-Fantasma”, com o guinchar insólito do trenzinho, com notas cheias de sustos, caveiras e fantasmagoria e, por fim, com “Montanha Russa”, estamos subindo, subindo, subindo e, chegado lá em cima, olhando para baixo, é hora de descer, descer, descer, e o carrinho vem descendo, descendo, veloz, e a orquestra vai subindo, subindo, o carrinho descendo, descendo, os músicos a 75 rpm e, de repente, o pequeno machimbombo freia, rugindo os alicerces da estação.

Eclogue, de Finzi, trouxe o solista Vagner Ferreira, que se anexou ao piano, que logo passou a jogar conversa fora com os instrumentos de cordas; juntos, começaram a evocar uma prosódia harmônica delicada, cheia de perdigotos sonoros, até a prosa chegar ao fim. Para mim, comparando com as outras peças musicais da noite, foi o momento de que menos gostei: o que não quer dizer nada, porque nessa noite tudo soou magnífico, e como um concerto não é uma competição de cavalos, não há por que torcer por um ou outro cavalinho, até porque o solista e os outros músicos deram o melhor de si. Até poderia pensar, também, que fosse hora mais de ir ao parque de diversões do que ao jockey clube, porque, talvez, o espírito estivesse mais para o peso do maracatu da orquestra do que à leveza do espírito nos vales bucólicos de Finzi. Será que faz frio na Catalunha?

2º tempo

15 minutos para tomar mais água no bebedouro, ir ao banheiro etc., e, quando voltamos, Parcival anuncia que, no intervalo, avisaram-no no camarim de que havia um senhor na plateia fazendo 100 anos. O homem se levantou, e, como é um cavalheiro, o maestro cumprimentou-o e ainda o homenageou com a segunda parte do concerto. Não conheço, até hoje, presente mais bonito. Por decreto-lei, toda vez que alguém fizesse 100 anos, essa pessoa deveria ser parabenizada de forma parecida, ou seja, com uma orquestra a seus pés. Lembrei, com o coração confrangido, da morte de Antonio Candido (1918-2017), nosso maior crítico literário de todos os tempos, aos 98, no dia anterior. Mas o artesão, provavelmente, como nos versos de Azevedo, não iria querer que nenhuma nota de alegria se calasse por seu triste passamento.

Começa o segundo tempo. Dos dois lados do palco, os músicos estão concentrados. O maestro mira-os com a batuta, e o “Divertissement”, de Jacques Ibert (1890-1962), compositor francês do século 20, inicia-se. É só a introdução, mas a orquestra está em forma tão boa que o público é capaz de pressentir como o humor faz parte dessa noite. Composta como música incidental para o filme Um Chapéu de Palha na Itália (1929), de Eugène Labiche, 88 anos depois, em Ribeirão Preto, o que se ouve dela é que não envelheceu nem um pouco, entusiasmando o teatro.

Eis, então, que é a hora de Alberto Nepomuceno (1844-1920) com sua Série Brasileira. Parcival conta que, na Europa, como compositor de talento excepcional, Alberto aproximou-se de Edward Grieg (1843-1907), o norueguês de Peer Gynt, que lhe disse para tocar coisas do Brasil, porque, dessa forma, iria trazer em sua música a cor local tapuia, e Nepomuceno compôs, em certo momento, essa Série Brasileira, um primor de peça musical que fez a gente, após sair do teatro, cantarolar o tema de “Alvorada da Serra” no carro: cordas que lembram “Sapo Cururu”, enquanto pra lá e pra cá a orquestra vai levando o público, como aquelas hastes de para-brisa em dias de garoa. Vêm “Intermédio”, “Sesta na Rede” e a incendiária “Batuque”, que encerrou a noite como se todos usássemos uma vitória régia em forma de chapéu. Os músicos da OSRP estavam iluminados e, após o bis, ainda arriscaram algumas notas de “Parabéns a Você” ao centenário aniversariante da noite. Precisava. Mais palmas à OSRP.

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 30/5/2017

 

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