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Terça-feira, 29/5/2018
Reflexões sobre a Liga Hanseática e a integração
Celso A. Uequed Pitol

Situados para além dos limites do Império Romano e separados pela península dinamarquesa, o Mar do Norte e o Mar Báltico compunham na aurora do século IX uma grande via, unificada pelo comércio, pela geografia e pela cultura, em grande medida oposta a outra grande via, também unificada pelo comércio, pela geografia e pela cultura, onde Roma e seu vasto Império nasceram: o Mar Mediterrâneo.

Não é difícil encontrar indicativos desta oposição. Encontramo-las no clima, nos bens comercializados, nos navios que faziam o tráfego, no idioma predominante, nas etnias que circulavam, nos costumes, em praticamente tudo. Já em seu tempo os romanos pareciam ter nítida consciência de que , ao atravessarem as densas e frias florestas da Germânia e chegarem às praias da Europa boreal, entravam num mundo completamente distinto daquele que conheciam. Se para Plínio, o Velho, o Mar do Norte era, muito simplesmente, o Oceanus Setentrionalis, para outros conterrâneos seus recebia o nome de Oceanus Germanicus. Já o Báltico, para Tácito, era o Mare Suebicum, o “Mar dos Suábios”. As duas referências de cariz étnico-cultural – Germanicus e Suebicum – ganham um significado especial quando comparamos com a maneira como os romanos nomearam, não sem imperial arrogância, o Mediterrâneo onde navegavam como senhores: Mare Nostrum – o Nosso Mar. Ali sentiam-se em casa; sob seu sol benevolente e sobre suas águas mornas navegavam como reis e senhores, levando sua Águia Imperial, seu pujante comércio e sua civilização a todas as partes. No Báltico e no Norte, no Mar dos Suábios e dos Germânicos, os senhores e reis eram outros e a civilização, se é que existia, era outra. Estes mares, um romano não pode chamar de seus. O mar deles era outro.

E não apenas dos romanos. O Mediterrâneo também era dos demais italianos, dos gregos, dos árabes, dos espanhóis, dos marselheses, dos sicilianos, dos turcos, dos judeus e de muitos outros, mesmo que não fossem os donos do Império. Era o mar de Alexandre Magno, de Sócrates, de São Paulo, de São Pedro, de Julio César, de Marco Antonio e de Maimônides. Era o mar da Ilíada e da Odisséia, cujo enredo – a viagem de Ulisses até Ítaca – foi resgatado num dos mais belos poemas escritos no século XX: no bel[itee is[smonides. lo do intencereudeus. dositalianos.omanos tr “Ítaca”, de Konstantinos Kavafis. Nele, o poeta assim se dirige ao viajante:

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos1.


Este era o Mediterrâneo: o mar das alegres manhãs de verão, das lojas dos fenícios, dos perfumes sensuais, dos sábios do Egito: o mar em que brotou e vicejou a nossa civilização. Por isso, também podemos dizer dele, como o orgulhoso romano, que é Mare Nostrum.
O contraste com o Báltico e o Norte é violento como as tempestades que, no duro inverno, atingiam sem piedade os batéis que ousavam navegar por suas águas. Nas praias do Norte europeu, o viajante de Kaváfis não encontraria as “lojas dos fenícios” para “belas mercancias adquirir”, e sua viagem muito provavelmente não seria revestida pelo tom existencial que ele lhe deu e que está, também, presente na leitura da Odisséia. Não deveria o desavisado viajante esperar que a estrada marítima fosse um aprendizado. Atesta-o as palavras do anônimo navegante do poema anglo-saxão The Seafarer (O Navegante), que, no século X, descrevia assim a vida daqueles que, como ele, haviam escolhido a vida de homens do mar:

(....) Por muitas privações passei
A inquietude mordendo o peito,
Ao contemplar o navio assaltado
Pelas pavorosas investidas do mar.
(....)

Ao anoitecer cai a neve, vinda do Norte,
E tudo se congela, coberto de granizo,
Semente das mais frias.
Mesmo assim, no coração vive um só pensamento:
Perseverar em minha travessia solitária
Esquivando o alvoroço das correntes.

(....) Ele, o homem próspero e cômodo,
Ignora o destino de quem, como eu,
Perde-se nos confins do mar2.
O autor do poema era cristão, como todos os anglo-saxões no século IX. Pode-se dizer que ele ainda teria a saída do conforto religioso diante da tribulação, saída que nem todos os por ali aventurados tinham. Ao final do primeiro milênio da era cristã, parte do Mar do Norte e parte significativa do Báltico não haviam sido cristianizados, o que significa dizer, entre outras coisas, que também não haviam recebido o legado cultural de origem greco-romana que sempre acompanhou a difusão do cristianismo.

Mas a barbárie, o paganismo, o frio, a neve e as noites longas do Norte significavam pouco perto da ação dos piratas. “Perder-se nos confins do mar”era também perder-se do pouco de segurança que aquela vida duríssima concedia aos homens. Omar do Norte e o Báltico eram um ninho de piratas e saqueadores, que tornavam qualquer viagem comercial uma aventura perigosíssima. Os mercadores do Mediterrâneo, por outro lado, viviam uma vida comparativamente muito mais tranqüila: suas águas eram melhor patrulhadas,menos expostas a ação dos malfeitores e, a partir do século XI, a Reconquista espanhola pôs a termo os últimos resquícios de pirataria na região3. "La securité”- como diz Roux de Rouchelle - rendue aux voyageurs devint un des principaux élements de civilisation: elle rapprocha les peuples, améliora les moeurs, les institutions et fit naitre las régles du droit (....)"4

Por essa razão, quando se fala no comércio entre cidades da Idade Média o caminho que imediatamente tomamos, quase que por instinto, é o do Mediterrâneo. E não é sem razão. A partir da experiência das cidades italianas nas trocas com Bizâncio, o mundo árabe, a Península Ibérica e até mesmo o Norte da Europa vemos surgir as bases do moderno direito comercial, das modernas sociedades comerciais, do direito marítimo e de muito mais, a ponto de Max Weber em sua monografia sobre o tema afirmar, sem lugar a dúvidas, que “it is understandable, as well as historically certain, that in the Middle Ages trade on a larger scale was first found in the cities of the Mediterranean sea”. E completa: “Those cities were the home of and undertaking that involved selling as well as trading merchandise, the commenda, especially in the trade between the western italian coast and the Spanish coast”5.

No entanto, nem tudo estava lá. Por mais bárbaro, inculto, isolado e perigoso que fosse, a região do Mar do Norte e do Mar Báltico foi também sede de um importante fluxo de comércio. Encampado por uma série de cidades, grande parte delas de origem comum, formadas no contexto da expansão territorial, econômica e populacional do Sacro Império Romano-Germanico para o leste, este fluxo era impulsionado, mantido e protegido por uma liga de cidades que, embora pertencentes formalmente ao Sacro Império, agiam de maneira totalmente independente e até mesmo antagônica a ele, liga esta que, por três séculos – do XIV ao XVII – foi, de fato, a maior força marítima e comercial do Europa e o seu mais duradouro exemplo de integração: a Liga Hanseática.

Pode parecer estranho falar de “integração” para definir a Hansa, em especial quando temos em mente os exemplos modernos de integração, como o Mercosul e a União Européia. Como podemos colocar ao lado destas duas entidades a experiência de uma associação de cidades, de número variável e nunca elencado propriamente, com propósito comercial e nenhuma instituição fixa a não ser uma assembléia de membros, a Hansetag? De que maneira o que conhecemos por integração pode ser aplicado ai? Como pôde esta associação, organização ou o que for sustentar-se durante três séculos desde a sua fundação, em 1356?

Celso A. Uequed Pitol
Canoas, 29/5/2018

 

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