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Terça-feira, 20/3/2018
Sebastião Rodrigues Maia, ou Maia, Tim Maia
Renato Alessandro dos Santos


Mais de dois anos depois de ter lido Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia (2007), biografia escrita por Nelson Mota, o que resta nesta memória debilitada por anos e anos de entorpecentes? Ficou esta frase de Sebastião: “Fiz uma dieta rigorosa, cortei álcool, gorduras e açúcar. Em duas semanas perdi 14 dias”.

Ficou também a irreverência de um homem que, maduro, era uma criança: shows a que não ia e que eram cancelados por uma infinidade de motivos, como estar chapado de “bauretes”, por exemplo, gíria que criou e que fez a cabeça dos músicos da época, além de servir de inspiração para o álbum Mutantes e seus cometas no país dos baurets (1972); cheques que dava sem fundos; a comilança; a pajelança; a desconfiança de empresários que surgiam no horizonte dispostos a oferecer trabalhos a Tim, que os perdia por alguma irresponsabilidade e tal.

Como personagem desta biografia, mais fascinante pelo biografado em si do que pela opção de Mota por uma escrita trivial, Sebastião Rodrigues Maia (1942-1998) surge como uma rachadura na parede, um buraco no asfalto, um litro de gasolina com um fósforo aceso por perto.


Tim levou vida flamejante. Começou entregando marmitas, para, aos poucos, deixar o vozeirão tomar conta e começar a encantar nos programas de TV, ali por volta da transição entre o P&B e a TV em cores. O corpo cada vez mais esférico – e, desculpe, mas é mais divertido do que triste cada capítulo trazer o peso que Tim ia acumulando em cada uma dessas fases. Viagem aos EUA, deixando o inglês up to date. Prisão por lá. Do rei Roberto ganha um piparote, e um dia, quando tudo parecia perdido, pega o violão e, no sofá onde dormia, na casa de um amigo, compõe isto:

Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir
tenho muito pra contar, dizer que aprendi,
que na vida a gente tem que entender,
que um nasce pra sofrer, enquanto o outro ri.


E, como sói acontecer, o sucesso veio bater à porta de Tim Maia, e, daí em diante, a loucura que se sabe: os primeiros discos ― que, hoje, em vinil, valem uma fortuna; a vontade descomunal de fumar maconha; a estrada, os músicos; a criação da gravadora Seroma, que daria nome também a sua banda (mais tarde rebatizada de Vitória Régia); as obras-primas Tim Maia racional, volumes 1 e 2; laricas-monstro; os problemas de saúde, aquele saco enorme, as técnicas de masturbação, o show derradeiro...

Nas mãos de Nelson Mota, mesmo reduzida à linguagem coloquial e, talvez justamente por isso, a biografia transborda, e é com satisfação que o leitor atravessa o livro inteiro. O autor não lapida o texto, como um ourives, uma joia; em vez disso, opta por lugares-comuns, chavões, frases feitas. Fora coisas assim, que não diminuem o prazer da leitura, a biografia flui, feito jangada no azul do mar, cerveja goela abaixo, frio embaixo da porta.


Lembro que levei mais de um ano para lê-la. Baixei todos os discos e os ouvi um a um. Não queria acabar a biografia. Protelava. Quando deveria lê-la, ia lavar louça, ia corrigir provas... Não queria que Tim Maia ficasse para trás, encerrando mais um ciclo, mais uma estação, e foi assim, demorando o mais que pude para terminar o livro, que o fim chegou, na estrada, quando voltava de ônibus de Minas, com uma lua empinada como uma pipa através da janela, enquanto passava por uma ponte e, passando por ela, o ponto final chegou... e essa ponte, feito revoada de pássaros, feito reticências, percebo agora, é tudo...

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 20/3/2018

 

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